Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4593 AR (parte IV)


– Ayalal!

Lysa vagueou por entre as pessoas, rodando a cabeça enquanto o tentava avistar. Apercebera-se que ele se levantara e fora atrás de alguma coisa, mas esperara que ele regressasse no instante seguinte. Porém haviam já passado alguns minutos e não havia sinal do rapaz. Voltou a chamá-lo pelo nome, sem obter qualquer resposta. Onde é que ele se teria metido? Teria regressado sozinho para o orfanato? Ayalal conhecia as ruas, não se perderia por ali, porém era estranho não a ter avisado.

Caminhou por mais alguns minutos, abordando uma ou outra pessoa, perguntando-lhes se haviam visto um rapazinho pálido a passar por ali. Ninguém o vira. Parou no meio da rua, oscilando entre a frustração e a preocupação. Se ele tivesse mesmo regressado para o orfanato sem a avisar, iria ouvir um valente raspanete.

– Ah, peço perdão…? – Uma voz suave chamou-lhe a atenção e Lysa olhou por cima do ombro.

Uma mulher, não muito mais velha do que ela e com a mesma estatura baixa, encontrava-se parada atrás de si com um dedo estendido, como se se preparasse para lhe tocar nas costas. Com o outro braço amparava contra o peito um gato de aspecto adoentado o qual lançou a Lysa um olhar lânguido e desinteressado.

– Sim?

– Ouvi dizer que andava à procura de um rapaz. – A jovem observou-a com uns expressivos olhos azuis, em busca de uma confirmação. Tinha o cabelo preso numa longa trança de um ruivo quente, e o rosto salpicado de sardas. Lysa tinha a certeza de que nunca vira a rapariga na cidade subterrânea.

– Ando. Ele afastou-se do grupo e não sabemos onde possa estar – confessou. – Ele é assim deste tamanho, com o cabelo preto e a pele muito clara.

Situou a mão ao nível do peito, como referência para a altura de Ayalal.

A rapariga pousou o queixo sobre a mão livre, a expressão enrugando-se um pouco enquanto pensava. Um instante depois os olhos arregalaram-se.

– Sim! Vi-o a correr naquela direcção.

Apontou para a entrada de uma rua estreita. Lysa não sabia exactamente onde poderia desembocar. Franziu as sobrancelhas mas agradeceu com um sorriso leve, antes de se afastar com passadas largas.

Atrás dela, a rapariga viu-a partir, enquanto afagava o gato entre as orelhas. Quando deu meia volta e se perdeu entre os transeuntes, levava consigo um sorriso largo que lhe espalhava no rosto um sincero regozijo.

*

Tinham-no amarrado, pouco importados com as lágrimas de dor ou com os gemidos que cada movimento do braço esquerdo causava. Tentou gritar uma vez, porém um murro do homem mais magro silenciou-o.

– Bem, é agora que nos livramos de ti, pequena aberração – disse o homem de espada embainhada. Acocorara-se ao seu lado, olhando-o com curiosidade. Levou-lhe uma mão ao rosto e, sem cuidado, afastou-lhe os lábios, observando-lhe os incisivos afiados. – E podemos levar estes como recordação. Poderão valer qualquer coisa.

Ay tentou afastar a cabeça da mão calejada que lhe tocava. Olhou na direcção da saída do beco. Eles não tinham como levá-lo sem darem nas vistas, não podiam simplesmente enfiá-lo dentro de um saco e levá-lo ao ombro ou arrastá-lo. Ao mesmo tempo que pensava isto, apercebeu-se de que uma sombra se aproximava. Por fim, alguém que o pudesse salvar! Gritou por ajuda, e uma voz feminina respondeu, chamando-o pelo nome. Um aperto gelado esmagou-lhe o peito ao reconhecê-la, e quando viu Lysa surgir diante de si, o coração parou.

– Ay! – Havia choque espelhado na cara de Lysa, enquanto assimilava toda a situação. O olhar saltou da criança para os três homens. – O que… deixem-no!

O homem acocorado soltou um estalido com a língua. Ay desviou a atenção para ele e o que viu fê-lo temer mais do que temera por si. O homem tratara-o como se fosse um divertimento ligeiramente interessante e rotineiro, sendo a sua possível morte algo tão banal como beber uma cerveja numa taberna. Porém a chegada de Lysa aguçara-lhe o sorriso para um esgar tortuoso. Os orbes brilhavam de antecipação por algo que Ay não compreendia – ou tinha medo de compreender.

– Ora, ora, ora… – Ergueu-se e rodou sobre os calcanhares para encarar Lysa. Cruzou os braços sobre o peito, inclinando um pouco a cabeça para um dos lados. – O que temos nós aqui? Uma donzela perdida?

Os outros dois homens entreolharam-se e trocaram um sorrisinho sarcástico. O mais magro avançou pela periferia de um dos lados do beco, aproximando-se.

Os punhos de Lysa fecharam-se com força e ela inspirou fundo.

– O que julgam que estão a fazer a essa criança? – O seu tom era simultaneamente vacilante e resoluto. – Libertem-na.

– Isso é uma ordem? Ouviram, rapazes? Esta frágil donzela está a dar-nos ordens. – Uma risada acompanhou-lhe o comentário e ele abanou a cabeça com descrença. – De facto, há mulheres com sentido de humor… agarrem-na.

Lysa recuou um passo e abriu a boca. Escutou-se o início de um grito.

– Façamos isto a bem! – A voz do homem interrompeu-a. – Se gritares ou fugires, matamos a cria de vampiro. Se colaborares, talvez o poupemos. Parece-me um bom negócio, não achas?

A jovem voltou baixar o olhar para Ay. O instante em que se encararam foi o suficiente para o rapaz perceber que a haviam deixado sem opções. O peito de Lysa ergueu-se numa inspiração funda de aceitação. Os punhos cerraram-se com força por um instante e depois relaxaram. Antes que ela pudesse responder à chantagem, o homem que se havia aproximado subtilmente avançou para ela num movimento rápido e agarrou-a pelas costas, prendendo-lhe as mãos com uma das suas, e pousando-lhe a outra sobre a boca.

– NÃO! Deixem-na! – O grito de Ayalal ecoou no beco. Tentou libertar-se, mas havia mais do que uma corda a impedi-lo. A dor do braço era excruciante, torturando-o a cada pequeno movimento. – Larguem-na!

O chefe do trio olhou-o por cima do ombro.

– Cala-te. – Voltou-se, dobrou as costas e agarrou-o pelo cabelo, levantando-lhe a cabeça do chão muito ligeiramente.

Ay cerrou os dentes e silvou por entre eles, de lágrimas a escorrerem-lhe rosto abaixo. Voltou a relancear Lysa, agora com mais dificuldade. O homem maior aproximara-se também e as suas mãos pareciam procurar algo no velho vestido. Medo, pânico, dor, coragem… havia tudo isso na expressão dela, assim como desafio a si mesma.

– Larg… – A palavra ficou a meio, quando, com toda a força, o chefe empurrou a cabeça do rapaz contra a pedra do solo. O berro de dor de Ayalal foi interrompido por uma tontura, seguida de uma escuridão súbita que lhe arrombou as portas da mente para o prender em si. A consciência esvaiu-se.