Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4593 AR (parte III)


Um arrepio de puro pavor percorreu-lhe as costas. Ayalal recuou um passo pequeno, tentando pensar nas hipóteses de fuga que poderia ter. Atrás de si não havia saída e a probabilidade de conseguir passar pelos três homens era menos do que ínfima. A imagem do gato a saltar da pilha de caixotes para o telhado de uma das casas pairou por um momento na sua memória.

– Não tens para onde ir, rapaz – notou o homem da espada, avançando num passo descontraído.

Ay engoliu em seco com dificuldade, a mesma que sentia ao respirar. Continuou a recuar, até se aperceber da presença do primeiro caixote, através da visão periférica. Correu para ele e trepou-o com movimentos frenéticos. Escutou uma agitação atrás de si, porém não ousou olhar, não já. Subiu para o caixote seguinte, ficando à altura de um homem de estatura média. Num gesto rápido, atreveu-se a espreitar por cima do ombro, quando se preparava para trepar um terceiro caixote, enclavinhando as mãos entre as ripas de madeira. O homem da espada tinha um braço estendido à sua frente, parecendo ter impedido o mais magro de arremessar uma adaga, e observava o seu avanço com uma expressão curiosa e interessada.

A estrutura periclitante estremeceu quando o rapaz deu o impulso para subir para o caixote seguinte. Ficou parado, de gatas sobre a madeira, enquanto esperava que a sua precária escada de fuga estabilizasse. Inspirou fundo, antes de erguer o olhar para o quarto caixote. Levantou-se com cuidado, lançando um novo olhar para trás.

– Vá, continua a tentar fugir – incentivou o homem, fazendo um aceno para cima com a cabeça. – Estamos aqui para ver quão longe consegues ir.

Com hesitação e desconfiança, o rapaz voltou a olhar na direcção do topo da casa. Não faltava muito. Se subisse para o próximo caixote, o telhado estar-lhe-ia ao alcance das mãos. Esticou-se, tentando agarrar com firmeza na tampa de madeira. No entanto, uma dor aguda e fria penetrou-lhe num dos dedos indicadores. Um grito engasgado encheu-lhe a garganta e o rapaz libertou a mão, a dor tornando-se quente, quando o sangue se libertou e escorreu. Ayalal levou-o à boca, abafando a dor, enquanto as lágrimas lhe vinham aos olhos. No mesmo instante, o intenso sabor a sangue encheu-lhe a boca, reavivando a memória daquilo que era, do nome que o homem lhe chamara. De alguma forma o toque morno, conjugado com a dor e com essa memória, conseguiu mantê-lo firme. Inspirou fundo e tirou o dedo da boca, flectindo a mão como quem testa a sua mobilidade.

Mentalizou-se de que conseguiria sair dali e fez uma nova tentativa, evitando a zona onde estaria o prego que o ferira. Cerrou os dentes e conteve a respiração por um segundo, içando-se e combatendo o instinto de largar as mãos quando toda a estrutura oscilou perigosamente. Ao sentir os pés apoiarem-se na superfície horizontal, suspirou e endireitou-se. Tinha o nariz ao nível da zona onde começava o telhado plano. Quando esticou os braços e os apoiou no parapeito de pedra para se puxar para cima, ouviu lá de baixo: “agora”.

Uma pancada seca ecoou no beco e, de súbito, Ay sentiu o caixote onde se apoiava fugir-lhe de debaixo dos pés, acompanhado por um estardalhaço de madeira a embater no chão. Os olhos quase lhe saltaram das órbitas quando o pânico o tomou sem aviso. Tentou agarrar-se à borda do edifício, esgatanhar com os pés na parede para se impulsionar para cima, mas os sapatos deslizavam e não havia nenhuma reentrância onde se apoiarem. Os braços começaram a escorregar. Mordeu o lábio inferior, tentando forçar os membros a aguentar-lhe o peso.

– Quanto mais alto se sobe…

A voz vinda do beco soou-lhe como um prenúncio de morte. Escorregou até ficar pendurado somente pelas mãos. Tentou cravar as unhas na pedra, criar qualquer atrito que o sustivesse, mas os dedos deslizaram, até sentirem somente o ar. Conteve a respiração, fechou os olhos e caiu. Quase de imediato, o ar saltou-lhe dos pulmões com um grito lancinante, quando atingiu um dos caixotes caídos. O seu corpo resvalou para o centro do beco, ao mesmo tempo que uma tremenda dor emanava do braço sobre o qual caíra. Não ouviu os passos a aproximarem-se, mas ouviu a voz debruçar-se sobre ele, enquanto uma sombra o espreitava.

– … maior é a queda.

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