Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4593 AR (parte I)


Nessa manhã todos acordaram cedo e ninguém molengou pela cozinha enquanto tomavam o pequeno-almoço. Durante a tarde haveria uma espetáculo de fantoches na praça principal da pequena cidade subterrânea e, após vários pedidos e choramingos, a Directora Drane permitira que pudessem ir se, e só se, as tarefas diárias estivessem concluídas.

Apesar de as crianças mais velhas poderem sair sozinhas para fazer pequenas tarefas, a maioria era obrigada a ficar dentro das paredes de pedra do orfanato, até uma das raparigas mais velhas se decidir a levá-los consigo até ao mercado ou a um dos pequenos templos. Por isso aquilo seria uma dupla oportunidade. Ayalal e duas outras meninas da mesma idade que ele eram a excepção: tinham autorização para sair do seu lar e ajudar em pequenos recados. No caso do rapaz, essa autorização incluía as aulas com Yudarh. Ay não estava certo de como Lysa conseguira convencer a directora a dispensá-lo durante tanto tempo, no entanto as crianças que não auferiam dessa benesse tinham acabado por juntar um novo factor à inimizade para com ele. No entanto, ali estava uma hipótese para todos poderem sair e divertirem-se.

O rapaz acabou de lavar as tigelas das papas de aveia do pequeno-almoço e saltou de cima do banco baixo que o ajudara a chegar melhor à tina de água fria apoiada na bancada. Abriu uma das portadas da janela e regressou para pegar na tina com ambas as mãos, indo despejá-la. A seguir voltou a enchê-la de água limpa para lavar alguma roupa encardida.

Enquanto estava distraído a esfregar uma camisola, Lysa espreitou-o da entrada da cozinha por um momento, antes de se encostar à parede a observá-lo com um sorriso leve. Por fim, acabou por se aproximar.

– Tão concentrado que estás na tua tarefa – notou.

A criança sobressaltou-se, tirando as mãos da água e erguendo o olhar cor de violeta. Sossegou ao ver quem era e sorriu-lhe.

– Estava a pensar nas aulas do mestre Yudarh – confessou, afastando dos olhos um bocado da franja que começava a ficar demasiado comprida. – A treinar mentalmente.

– Treinar as letras mentalmente parece complicado – comentou Lysa, arqueando as sobrancelhas. Parou ao lado de Ayalal, fitando por um momento as peças de roupa que ele havia já lavado e que estavam prontas para pendurar junto à lareira. – Eu ajudo-te com isto, para te despachares mais depressa.

O rapazito torceu o nariz face à oferta da amiga. Não que a ajuda não fosse bem-vinda, no entanto…

– Se os outros te virem vão dizer que estou a fazer batota – fez ver.

– Mas… hoje é o teu sétimo aniversário – lembrou, como quem não queria nada. – Como pequeno presente, mereces ter menos trabalho. Quer os outros gostem, quer não.

Deu-lhe um beijinho rápido no cabelo negro, antes de pegar na roupa e a levar para junto da lareira. Ainda hesitante, mas mais contente, Ay acabou aquela tarefa e levou a última peça de roupa até Lysa que, depois de a pendurar, apoiou as mãos de cada lado da cintura, com um sorriso amplo.

– Tarefa cumprida – notou, baixando o olhar para ele. – Agora podemos descansar um pouco, e depois ajudas-me com o almoço. O que achas?

A ideia de descansar agradou particularmente ao rapaz que tinha os braços doridos de esfregar tanto a loiça como a roupa. Lysa puxou dois bancos para junto da lareira, donde a tentação do calor os chamava, e sentaram-se, de pés esticados na direcção das chamas vivas. O frio do Inverno soprava através de qualquer fresta que conseguia encontrar.

– Como será o espetáculo? – perguntou Ay, curioso, enquanto imaginava a forma dos fantoches e os seus coloridos. – Será que têm uma história para contar?

– Ora, certamente que sim. Se não tivessem não seria interessante – respondeu a amiga, remexendo no bolso largo do avental que usava sobre a saia. – Mas acho que vai estar bastante frio lá fora quando formos, por isso…

Tirou do bolso uma longa tira de tecido cor de violeta, cujas extremidades acabavam em finas tranças, e estendeu-lha. Ayalal piscou os olhos e abriu a boca numa exclamação muda, antes de estender as mãos pequenas para o cachecol. Sentiu nos dedos o toque áspero mas simultaneamente fofo da lã e levou-o até ao rosto, fechando os olhos para apreciar melhor aquele presente.

– Obrigado, Lysa – murmurou, roçando a face no tecido. – Adoro-o.

– Então experimenta-o – sugeriu, observando-o com carinho. – Achei que iria condizer com os teus olhos.

Ayalal fez como ela dissera, e enrolou o cachecol em redor do pescoço, aconchegando-o bem e sorrindo de orelha a orelha, tão claramente feliz que uma pontada de comoção alagou o olhar de Lysa com lágrimas mornas. Se fosse possível, gostaria que ele tivesse sempre aquela expressão no rosto. Faria por isso, tanto quanto pudesse.

A jovem levou as mãos ao cachecol e ajeitou-o melhor, agarrando depois numa trancinha de lã, a qual aproximou de súbito do rosto do rapaz para lhe fazer cócegas. Ay encolheu o pescoço, a boca desaparecendo dentro do tecido, ao mesmo tempo que uma gargalhada lhe fugia. Lysa riu-se com ele e acabou por lhe oferecer um beijo terno sobre a fronte.

– Feliz aniversário, meu pequenino – murmurou contra a pele ebúrnea do rapaz.




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