Mosteiro das Sete Formas, 10 de Kuthona de 4592 AR (parte I)


Desde que Yudarh se oferecera para o ensinar que, dia sim, dia não, Ayalal passava duas horas diárias com o tiefling. Lysa, tendo uma série de tarefas no orfanato, era incapaz de estar presente na maior parte das aulas, por isso o rapaz subia sozinho até à casa do mestre. Yudarh não era propriamente um professor paciente, no entanto Ay era um aluno sossegado e isso, em parte, complementava cada uma das personalidades. Em adição, o rapaz aprendia depressa e era subtilmente curioso – expunha as suas dúvidas e curiosidades, sem insistir demasiado, e conseguia perceber pela expressão do mestre quando estava a pisar terreno perigoso.

– O pendente em forma de espada… – Ayalal estava sentado à mesa e segurava um pedaço de carvão com o qual desenhava duas letras do alfabeto repetidamente. Não olhava para o Yudarh enquanto falava. – O que é?

Sentado ao lado dele, o meio-demónio amparava um livro fino sobre o colo. Era o que normalmente o ocupava enquanto o pequeno praticava os seus exercícios de escrita. Escrito de forma diferente do normal, o mestre dissera-lhe que era de poesia.

– É um símbolo sagrado. Alguma da magia que pratico é de inspiração divina, por isso preciso do símbolo da divindade a quem presto a minha veneração – explicou Yudarh, lançando-lhe uma mirada. – Não imaginei que ainda te lembrasses dele.

Ayalal sorriu um pouco. Lembrava-se perfeitamente do feitiço que o meio-demónio usara meses atrás, e da forma como o pendente parecera brilhar dentro da mão cerrada de Yudarh.

– Então… é uma espécie de clérigo? Curou aquela gente toda no orfanato – notou.

Não obteve uma resposta imediata. O rapaz hesitou numa das letras, pensando para si se seria altura de mudar de assunto.

– Mais ou menos. Sou um bocadinho mais sombrio do que isso – respondeu, a voz baixando de tom. – Sou, ou era, um inquisidor, alguém que persegue os inimigos da sua fé.

Houve um novo silêncio, em que Yudarh pareceu pensar em algo mais e Ayalal retomou a escrita. O mestre conseguia perceber o cuidado que o aluno tinha para não cometer qualquer erro.

– Então… matava pessoas que não acreditavam na sua fé? – acabou o pequeno por perguntar.

– Não. Só os que eram inimigos dela, e nem sempre os matava – respondeu Yudarh, voltando a baixar a atenção para o livro. – A entidade divina que venero chama-se Iomedae, é uma semi-deusa e Arauto do deus Aroden.

Ay voltou a parar de escrever, desta vez erguendo o olhar, curioso por saber mais.

– Como é ela?

A questão arrancou uma pequena risada ao tiefling.

– Não é como se eu a conhecesse pessoalmente, mas Iomedae era uma feroz combatente contra as forças do mal, uma defensora da justiça, do valor, da honra e do bem – disse, passando uma mão pela lombada do livro. – É uma divindade inspiradora.

O pequeno fez um aceno, apoiando o rosto numa mão, enquanto pensava no assunto.

– Isso faz com que o mestre mate seres maus – notou. – Para proteger pessoas. É o que faz aqui na cidade, não é? É por isso que nenhum monstro chegou até aqui, porque o mestre luta contra eles. É um herói mas ninguém sabe. É injusto.

Yudarh fechou o livro, esticou o braço e bateu com ele ao de leve na cabeça do seu aluno.

– Seria injusto se eles soubessem o que se passa, mas não sabem, nem devem saber, para manterem a preocupação distante dos seus corações. Que se preocupem somente com ladrões e assaltantes e deixem os monstros para os pesadelos nocturnos. Por vezes a ignorância pode ser uma bênção. Para além disso – acrescentou, tirando o livro de cima da cabeça de Ayalal –, eu não quero esse reconhecimento, não sou herói nenhum. Faço o que consigo e posso com os poderes que tenho, nada mais.

– E com a ajuda do seu bastão. – Ay lançou um relance à arma mágica com as suas estranhas inscrições a negro, encostada à estante. Pelo canto do olho, conseguiu aperceber-se de que o mestre soltara um suspiro silencioso. Perscrutou-o com mais atenção. Seria tristeza que o seu olhar vermelho reflectia?

O rapaz pressentiu que havia ali uma história por contar, mas não se sentiu no direito de insistir. Regressou ao seu pergaminho, em parte arrependido por ter falado do bastão, em parte curioso por o que se esconderia naquele suspiro. Tentaria perguntar a Lysa, talvez a amiga soubesse.

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