Mosteiro das Sete Formas, 21 de Neth de 4592 AR (parte IV)


O tentáculo em redor do tornozelo de Ayalal não afrouxara o aperto, pelo contrário. As palavras fizeram-no estreitar-se ao ponto de parecer querer enterrar-se na carne. O rapaz soltou um gemido de dor e, agora que a criatura estava distraída, dobrou-se sobre si, tentando com os dedos abrir o tentáculo para se libertar. Porém, a sua força estava muito longe de se comparar à do monstro.

Quando Yudarh fez um pequeno movimento para diante, a boca da criatura escancarou-se. Um grito alienígena, repleto da mais pura raiva e horror, precipitou-se sobre eles e tentou perfurar-lhes não só os ouvidos, como a alma. Ay encolheu-se por instinto, como se o ser tivesse acabado de saltar na sua direcção. Porém nada aconteceu. O grito continuou a ecoar pela gruta, perdendo-se na escuridão.

No processo, três outros tentáculos lançaram-se na direcção do tiefling. Ele baixou-se e desviou-se para o lado, evitando dois deles, porém o terceiro atingiu-o numa coxa. Yudarh vacilou, mas não caiu. Lançou um olhar à criatura.

– Os teus poderes não me afectam a mente – disse, pousando os cascos em terra firme.

Como aviso, a extremidade superior do bastão soltou uma faísca. No instante a seguir, um novo relâmpago de energia eléctrica precipitou-se na direcção da criatura. Ela não teve como fugir. O corpo foi abalado por vários estremecimentos e o grito de horror com que os tentara afectar vacilou para algo gorgolejado.

Com isso, o tentáculo que agarrava Ayalal abriu-se e escorregou da sua perna, num movimento serpenteante. A criança tornara-se um alvo secundário.

Os quatro membros lançaram-se sobre Yudarh em simultâneo. Um deles falhou redondamente o alvo, outro pareceu acertar, e no entanto o tiefling não pareceu de todo afectado com o choque. Dos outros ele desviou-se com movimentos atentos. Uma rosnadela frustrada soltou-se da boca da criatura, diante do completo falhanço da sua ofensiva. Yudarh não esperou um segundo para contra-atacar.

Ay encostou-se à rocha o melhor que podia, tentando manter-se tão longe quanto possível da batalha, enquanto observava. O meio-demónio não demonstrava qualquer tipo de descontrolo. Cada ataque parecia premeditado, a atenção focada no que a criatura poderia fazer a seguir. Desse modo, conseguiu evitar todos os ataques que lhe eram dirigidos. A criatura não teve a mesma sorte. Quando realmente percebeu que não teria hipótese de vitória, tentou rastejar e fugir, porém poucos foram os metros percorridos, quando um novo relâmpago a atingiu, siderando-a.

Muito quieto, Ayalal ficou a olhar para o corpo disforme, caído no chão. Fumegava, e o cheiro a carne queimada toldava o ar. Ainda temeu que pudesse voltar a erguer-se, mas nem um membro deslocado estremeceu. Yudarh aproximou-se da criatura, levando um joelho ao chão para a observar de perto. Tocou-lhe com cuidado, voltando-a para si. Ay viu-o a abanar a cabeça e os ombros descaíram um pouco. Sussurrou algumas palavras numa língua desconhecida que, estranhamente, pareciam conter em si um lamento pesaroso.

Por fim, o tiefling ergueu-se e voltou-se para o rapaz. Por um momento Ayalal julgou que também ele seria alvo de um daqueles ataques fulminantes, e encolheu-se por instinto. O olhar de Yudarh coriscava de fúria.

– Devia tê-lo deixado comer-te, criança idiota! – rosnou.

– Eu não quis… eu não sabia… eu precisava… desculpe, mestre Yudarh. – A cabeça da criança descaiu, ainda assim o olhar saltava assustado para a criatura. – Precisava de o encontrar de qualquer forma.

– Não desta forma. Podias estar morto, Ayalal. Não fui eu que te salvei, foi algum deus que teve pena de ti – atirou-lhe as palavras, como se fossem estalos. – Por acaso, e só por acaso, estava aqui perto! E se não estivesse?! Estas grutas são gigantescas, profundas e extremamente perigosas. Aquilo é só uma amostra.

Com a mão livre, apontou o cadáver no chão.

O lábio inferior do rapaz estremeceu e ele engoliu em seco, prendendo o soluço que se queria soltar. A voz vacilou, tornando-se um murmúrio.

– Mestre, a Lysa está a morrer… estão todos a morrer. – Não teve coragem para o encarar. – Ninguém os consegue curar. Eu precisava de o encontrar.

Yudarh não lhe respondeu logo. Ay sentiu o seu escrutínio rápido e pareceu-lhe ouvir o que seria um muito leve e disfarçado suspiro. O som de cascos a bater na pedra avizinharam-se de si. O pequeno fechou os olhos e encolheu-se mais. No entanto, acabou por sentir uma mão pousar-se ao de leve sobre o cabelo.

– Contas-me tudo no caminho de regresso.

O corpo da criança relaxou sob o toque familiar e, inevitavelmente, um novo soluço inundou-lhe o rosto de lágrimas.

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