Mosteiro das Sete Formas, 21 de Neth de 4592 AR (parte II)


Ofegante e trémulo, parou somente diante da porta fechada. Bateu com a pouca força que lhe restava, mal escutando o som a repercutir-se na madeira.

– Mestre… – sussurrou, dolorosamente consciente de que ninguém o ouviria. Encostou-se à porta e deixou que a exaustão suavizasse. Voltou a bater, ainda assim o punho fraquejava. – Mestre Yudarh!

A única resposta que obteve foi o eco da sua voz nas paredes escurecidas do túnel. Esperou e, sem ter a certeza do tempo que passara, chamou-o novamente e voltou a bater à porta. Mas foi um esforço vão. Se estava em casa, o tiefling não o receberia.

Olhou para as sombras que o haviam seguido até à soleira da porta de Yudarh. Nunca vira o mestre na cidade e, pelo que Lysa dizia, ele preferia a reclusão que lhe reservava a solidão. Não estando em casa, e sendo improvável que houvesse descido à cidade, só via duas hipóteses possíveis.

Caminhou até ao cruzamento, apoiando uma mão na parede. No peito o coração ainda batia descompassado. Lançou um olhar ao trilho que percorrera meses atrás, até ao exterior, onde, pela primeira vez, pudera cumprimentar o céu e o Sol. Depois, fitou o lado oposto. Conseguia perceber como o túnel se perdia na mais pura escuridão, alguns metros mais à frente. Já vira Yudarh desaparecer por aquele trilho e acreditava no que as histórias contavam sobre os monstros que viviam nas sombras das entranhas das montanhas.

Dessa vez, não precisou de coragem para avançar: foi o medo que o empurrou em frente. Entrou na escuridão, seguindo com menos cuidado do que sabia que deveria. Apesar de ser capaz de ver no escuro, a falta de qualquer tipo de luz intimidava e ameaçava-o. Se as histórias fossem verdadeiras, haveria criaturas à escuta, monstros que esperavam por qualquer ser vivo que pudessem devorar.

O caminho começou a descer e as paredes estreitaram-se. O ar que pairava em seu redor tornou-se ligeiramente mais húmido e pesado. Ao fim de alguns minutos, Ay chegou a uma bifurcação: um dos lados seguia no mesmo sentido descendente que levara até ao momento; o outro não passava de pouco mais que uma ampla falha na rocha, através da qual um homem adulto conseguiria passar com cuidado. Parou, ponderando nas poucas hipóteses que tinha. Yudarh poderia estar em qualquer lado, e ele não fazia ideia da extensão daqueles caminhos. A probabilidade de se perder era enorme. Mas se não encontrasse o meio-demónio a tempo…

Encheu os pulmões de ar e esperou um segundo, antes de os esvaziar num súbito grito.

– Yudaaaaarh!

O grito ecoou nas paredes vazias, sendo pouco depois engolido pelo silêncio. Era uma péssima ideia, Ayalal tinha plena noção disso. Se o mestre o ouvisse, estivesse onde estivesse, outro tipo de coisa certamente o faria. Voltou a chamá-lo uma vez e depois olhou para os dois caminhos que tinha à escolha. Nenhum lhe parecia melhor do que o outro, por isso acabou por escolher a fenda, pela qual se infiltrou. Perscrutou cada metro em diante, enquanto tentava ouvir mais do que os seus passos e a própria respiração.

Caminhou talvez durante meia hora – não tinha completa noção do tempo que passara. Para além do seu campo de visão, onde tudo anteriormente fora breu, surgiu uma leve luminosidade. Ayalal franziu as sobrancelhas e parou, com uma mão apoiada na parede. Aguardou que a claridade revelasse ser mais do que uma luz ao fundo do túnel, porém ela não se moveu. A criança avançou com mais cautela, os passos tornando-se tão silenciosos quanto conseguia. Quando estava mais perto, apercebeu-se que a falha de alguma forma se abria para o compartimento donde vinha a luz e que esta parecia produzida pela própria rocha, que em algumas zonas se tornava azulada. Espreitou para ver melhor. A falha abria-se para um compartimento amplo de tecto alto. Uma dúzia de estalactites estendiam-se dele, tentando alcançar as estalagmites que cresciam sob elas. Um ou outra poça de água compunha o local. Para além disso, estava, aparentemente, vazio.

Saiu do interior da falha, sem conseguir disfarçar uma certa curiosidade por aquele estranho brilho. Evitou pisar as poças, porém não foi difícil as meias ficarem molhadas da humidade fria da pedra. Parrou por um momento, debruçando-se sobre um dos brilhos e percebendo que não era realmente a pedra que brilhava, e sim algo que estava colada a ela. Já vira coisas daquelas nas paredes da cidade, só não eram brilhantes. Pensou por um segundo, antes de acenar para si mesmo, ao lembrar-se do nome. Era um líquen, e aquele deveria ser mágico. O melhor era não tocar-lhe, ponderou.

Endireitou-se e voltou a olhar em volta. Mais à frente, a galeria começava a afunilar-se, formando uma nova passagem onde a luz morria. Atrás de si… franziu as sobrancelhas e regressou até junto da fenda na parede. Tocou com a mão pequena numa zona da pedra à altura da sua cabeça. Havia sulcos na rocha, sobrepondo-se em vários ângulos. Eram demasiado definidos para se confundirem com marcas naturais da pedra. Engoliu em seco. Lembravam demasiado estrias deixadas por garras de algo suficientemente forte para rasgar aquela dureza. Não vira nada daquilo durante a caminhada pela falha, por isso pertenceriam provavelmente a algo que tentara sair, mas não conseguira. Um dos monstros que vivia ali.

Contemplou o que o poderia esperar do outro lado. Uma centena de dentes famintos e garras que lhe rasgariam o corpo. Cerrou os punhos. Não podia acobardar-se. Se alguma coisa o tentasse atacar, ele limitar-se-ia a correr tão depressa quanto conseguisse para lhe fugir.

Resoluto, avançou para o outro extremo da galeria, contornando algumas das estalagmites. Atrás de si, deixou o gotejar esporádico da água que se infiltrava na montanha e, após uma inspiração, reentrou na escuridão. O túnel alargava-se consideravelmente daquele lado. Colunas espessas e meio disformes formavam apoios casuais entre o tecto e o solo. Ay atentou as paredes e o próprio chão, no entanto não viu sinal de outras marcas que pudessem denunciar um habitante obscuro.

O trilho encurvou, e a criança parou de repente à beira de uma descida a pique. Não lhe via o fundo. Hesitou, apoiando uma mão na parede. E se não conseguisse voltar a subir?

Por entre a indecisão, foi incapaz de perceber que alguma coisa se aproximara de si pelas costas. Só sentiu de súbito um dos pés a fugir-lhe do chão. Mas, nesse mesmo instante, mal tomou noção da dor da queda que deu para a frente, ou sequer do tentáculo que lhe prendia o tornozelo e o arrastava para trás. Na verdade, já não se encontrava de todo numa gruta escura, mas sim de regresso ao orfanato. Diante de si, Lysa jazia exangue, morta pela doença que a minara, e ele chorava como nunca antes havia chorado, enquanto uma dor terrível lhe rasgava o peito.

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