Mosteiro das Sete Formas, 21 de Neth de 4592 AR (parte I)


Hendran insistira que Ay se deitasse e tentasse descansar. Ele limitara-se a lançar-lhe um olhar mortiço e abanar a cabeça numa negação. Sob as pálpebras, dois poços escuros falavam melhor do que qualquer palavra a respeito do cansaço da criança. Na verdade, o contraste com a pele pálida fazia-lo parecer mais doente do que alguns dos que padeciam da maleita.

Lysa passara a noite num sono inconstante repleto de murmúrios e esgares de angústia. Com o mimetizar exterior do nascer do dia, a luminosidade do quarto começara a crescer, assim como a sua inquietação. Ay cabeceava para a frente, lutando consigo próprio para não adormecer, quando a voz da amiga o despertou qual estalo no rosto.

– Larguem-me! – Lysa gritara e abrira os olhos, cuja atenção caiu sobre o rapaz ao seu lado. O medo inundou-lhe o rosto num reconhecimento que não era o suposto: via alguém que não era Ayalal. – Deixa-me, por favor! Isso magoa… por favor, por favor!

Soltou um soluço e tentou rastejar para longe dele. Por um segundo, Ay paralisou, chocado com tal reacção, e os músculos fraquejaram quando os tentou mover, doridos por tudo o que haviam passado nos últimos dias. No entanto, logo a seguir agarrou-a para a manter na enxerga.

Em resposta à prisão, as pálpebras de Lysa escancararam-se em puro terror. Ergueu uma mão trémula e pressionou-lha contra o rosto, tentando afastá-lo de si. Faltava-lhe porém a força.

– Lysa, sou eu – murmurou Ay, fechando um olho sobre o qual caíra um dedo magro. – Ninguém te vai fazer mal…

– Não, por favor! – implorava, as lágrimas começando a escorrer-lhe pelo rosto que se contorcia num choro sufocado. – Eu não fiz nada... larga-me, pai, larga-me! Não, não… Mãe, ajuda-me!

O rapaz fez o que pôde para a manter deitada, refreando-lhe as tentativas de o afastar, mas era difícil. O pânico dera-lhe uma falsa força e, apesar de Lysa não ser alta, ainda assim era maior do que ele, o que tornava mais difícil tentar contê-la. Acabou por, de alguma forma a largar e obrigá-la a sentar, só para a poder abraçar, fazendo por prender-lhe os braços contra o peito. Ela gritou de desespero, tentando escapar-se.

– Não vou deixar que te magoem – disse-lhe baixo, junto do ouvido, esperando que houvesse discernimento suficiente para o compreender. Pensou cada uma das palavras. – Estás segura aqui, nós protegemos-te. Somos teus amigos, a tua família. Ele não te fará mal, nunca mais.

Demorou até a jovem sossegar contra ele, levada por um choro que, devagar, se amenizou. Baixinho, Ay cantou-lhe uma música de embalar, a mesma que Lysa lhe cantava algumas vezes para o ajudar a dormir, esperando que isso fosse uma ajuda a sossegá-la. Quando achou que podia aliviar o aperto, o pequeno libertou um braço e afagou-lhe o cabelo num toque carinhoso mas algo trémulo, receando despoletar um novo ataque de alucinações. Por fim, também o choro terminou, deixando-a num sono exausto, aconchegada nos seus braços mais pequenos. Com ajuda de Hendran, voltaram a deitá-la na enxerga.

De mente esgotada por tudo o que se passara, Ayalal saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Lá fora, caminhou lentamente pelo corredor sombrio, os punhos cerrados com tanta força que as extremidades das unhas o magoavam. De súbito, parou e esmurrou a parede ao seu lado. A dor do impacto entranhou-se-lhe pelos ossos, porém foi um alívio breve ao que sentia. Inspirou fundo e engoliu em seco. Não percebia como é que não havia ninguém que os pudesse ajudar. O clérigo falhara de todas as vezes; no dia anterior ouvira Drane a contar a Hendran que os curandeiros, sabendo disso, se haviam recusado a ver as crianças, e que tinham sugerido que fossem levadas para fora da cidade, para não contaminarem os restantes cidadãos. Estavam a condená-los, não se atreviam sequer a tentar! Rosnou por entre os dentes, sentindo raiva dessas diabólicas pessoas, raiva do pobre rato que deveria ter causado aquela epidemia, raiva dos deuses a quem teciam preces, mas que na verdade eram incapazes de ajudar um bando de crianças…

Voltou a esmurrar a parede e a dor fez com que os pensamentos parassem por instantes, para a seguir ficarem a pairar na consciência. Havia neles algo de importante, sentiu, alguma coisa que lhe estava a escapar. Concentrou-se, resistindo à raiva que queria tomar posse dele. Quando se apercebeu do que era, os olhos arredondaram-se. Sentiu-se estúpido por não se ter lembrado antes.

Um instante depois, galgou pelos degraus abaixo e precipitou-se para a porta, saindo a correr para o frio da cidade, sem sequer se calçar. Atrás de si, a porta ficou aberta.

***

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