Mosteiro das Sete Formas, 19 de Neth de 4592 AR (parte III)


O clérigo prometera voltar logo pela manhã do dia seguinte, para tentar um novo feitiço. Ay e Hendran, a única jovem que, por milagre, ainda não havia adoecido, continuaram a cuidar dos doentes, enquanto a directora tirara algumas horas para tratar da vida que se perdera. O sossego que tiveram foi pouco.

Após ter entrado no quarto, o rapaz forçou-se a permanecer e suportar o odor a sangue que lhe remexia com os sentidos. O choque inicial passara, no entanto a perturbadora sensação de que tinha diante de si um banquete onde não poderia tocar horrorizava-o. Repetiu mentalmente que nada era mais importante que ajudar no que pudesse, por quem estava doente… pela pessoa que mais o amara durante aqueles anos.

Depois de ter tentado alimentar toda a gente, e de se obrigar a comer também um pouco do jantar, Ayalal deitou-se no chão, ao lado da enxerga de Lysa. A amiga estava acordada, observando-o com uma aparente dificuldade em manter os olhos abertos. Forçou um sorriso na direcção de Ay e deixou uma mão escorregar pelo chão na direcção dele, vacilante. Ele pegou-lhe com ambas as suas, mais pequenas, amparando-lhe a tremura. Uma humidade fria e doentia apoderara-se dela. Encostou-a ao seu rosto e aos lábios, tentando passar-lhe um pouco do seu calor.

– Desculpa, pequenino – murmurou, tão baixo que seria difícil alguém ouvir, para além dele. – Estou a dar-te tanto trabalho…

– Não penses nisso. – Manteve a mão dela encostada a uma bochecha. – Queria fazer mais, mas não consigo, Lysa.

– Tonto… já fazes demasiado. És só uma cri… – O sorriso esmoreceu por um momento, sendo substituído por um esgar de dor e a mão retraiu-se entre as dele. Ela reteve a respiração e fechou os olhos com força.

Ayalal semi ergueu-se do soalho, preocupado, apoiando-se num cotovelo.

– Lysa, posso…

– Não – arquejou – Já passou… já passou… não é nada de mais…

Mas era, e ele não sabia como ajudar. Podia rezar a todos os deuses, mas se algum quisesse realmente socorrê-los, já o teria feito. Estavam por sua conta. Quando a expressão da amiga descontraiu um pouco, Ayalal voltou a pousar o corpo no chão. Porém, no peito o coração ainda batia descompassado, temendo por ela.

As duas velas que iluminavam parcamente o quarto apagaram-se. Ay continuou a observar Lysa, apesar de agora ela ser incapaz de o ver.

– Não queria que tivesses de passar por isto – murmurou a jovem, por entre os gemidos baixos que, por si só, se tinham transformado numa espécie de atmosfera. – És só uma criança, e tão pequena.

Com cuidado, Ay largou a mão que segurava e empurrou-a de volta para a enxerga, tapando-a também com o cobertor. A seguir acariciou-lhe o rosto, tocando a cicatriz que a marcava. Lysa fechara os olhos e a respiração tornara-se mais suave.

– Eu também não queria que passasses por isto – respondeu. Não obteve resposta. Lysa cedera ao cansaço e acabara por adormecer, ainda que desassossegada.



De madrugada, Ay deu um salto do canto onde dormia, ao escutar um guincho de pânico. Olhou em volta, tal como alguns dos que haviam também acordado sarapantados, sem perceber o que se passava. Acabou então por detectar um trémulo braço erguido – Pather apontava para o tecto, horrorizado, ao mesmo tempo que se tentava sentar. As dores, no entanto, não lho permitiam, obrigando-o somente a contorcer-se e a arrastar-se, tentando fugir.

Ayalal ergueu o olhar para o tecto, descobrindo que estava vazio, como sempre estivera. E mesmo que não estivesse, por entre a escuridão, outra pessoa seria incapaz de ver fosse o que fosse.

– Ajudem-me! – O grito de Pather encheu o quarto. – Ela vai devorar-me, sal…salvem-me!

Passos rápidos percorreram o soalho e a porta abriu-se, deixando entrar uma nesga de luz fraca. Um vulto saiu, regressando pouco depois com uma vela acesa. Os que estavam mais perto puderam então testemunhar o puro terror com que o rapaz fixava o tecto, os olhos tão abertos que ameaçavam saltar das órbitas.

Ay levantou-se e saltou por cima de Lysa para chegar ao órfão. Tocou-lhe na fronte, somente para confirmar a forma como a febre lhe havia tomado a mente e distorcido a realidade.

– Hendran, água fria! – pediu Ay, agarrando-o para impedir que fugisse da enxerga. Pather esbracejou, atingindo-o ainda com uma cotovelada no queixo, porém a sua força estava tão deteriorada que pouco lhe doeu. – Nós estamos aqui para e ajudar, não vamos deixar que a coisa te faça mal.

A outra jovem havia já ido buscar a tina com água e pousava-a do outro lado do rapaz. Ensopou o trapo e passou-lho no rosto, enquanto Ayalal o prendia e forçava a deitar-se. Não era fácil, a inquietação dos delírios tornavam-no como cego e surdo a tudo o que não fosse a criatura imaginária que o atacava. Os minutos passaram-se, longos. Alguns dos doentes continuaram a observá-los, enquanto outros voltavam-lhes as costas e encolhiam-se sobre a roupa da cama. Pather acabou por se acalmar, em parte por exaustão, em parte pelo pano frio que se esforçava por arrefecê-lo.

Por fim, Ay largou-o, sentando-se no chão e enchendo os pulmões de ar. Suava por todo o lado, de nervosismo e cansaço. Levou ambas as mãos as rosto, deixando-as esconderem-lhe os olhos e o esgar de frustração.

– Vai dormir, pequeno.

Ayalal entreabriu os dedos, e espreitou Hendran. Tinha, talvez, mais um ano do que Lysa, mas o cabelo em desalinho e as olheiras profundas envelheciam-na muito além disso. Uma parte de si queria insistir e mantê-lo acordado, a outra só ameaçava cair para o lado para dormir e não mais acordar. Após uma hesitação, acabou por assentir e arrastou-se até ao seu cobertor. Não deu conta de ter adormecido.

***

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