Mosteiro das Sete Formas, 19 de Neth de 4592 AR (parte II)


Ayalal seguiu o passo de corrida de ambos, contendo-se para não os ultrapassar. No entanto, ao alcançarem o quarto, o rapaz estacou de súbito, ainda com um pé erguido, sem entrar. Pairava no ar um cheiro diferente.

– Pela Deusa – murmurou o clérigo, erguendo um braço por instinto e cobrindo a boca e o nariz com parte da manga.

– Não é só a diarreia. – A directora avançou sem hesitar por entre as enxergas, parecendo indiferente ao odor pestilento.

Pois não, não era só isso. Ay deu um passo atrás. Era um cheiro férreo, que o chamava, que lhe dava uma fome impossível de saciar.

– As fezes da bebé estão cheias de sangue vivo, demasiado, clérigo Itori. – Drane ajoelhou-se junto à bebé que nem para chorar tinha forças. O corpo pequeno tremelicava de fraqueza, numa ameaça implícita. 

As rugas do clérigo vincaram-se mais ao deparar-se com o estado da criança. Baixou-se ao lado da enxerga e arregaçou as mangas da túnica até aos cotovelos.

– O caso dela tornou-se extremo – murmurou. – Vou pedir à Deusa que me empreste os seus poderes curativos.

Da porta, com uma mão sobre a boca e o nariz, Ayalal estreitou o olhar na direcção do reverendo, atento ao que ele se preparava para fazer. Queria aproximar-se, porém temia que aquele terrível cheiro o aliciasse mais. A ponta da língua deslizou sobre os incisivos afiados. E se não se conseguisse controlar e atacasse alguém?

O clérigo iniciou o recitar de uma litania baixa, enquanto a mão esquerda se erguia de palma virada para cima. Um minúsculo ponto de luz branca surgiu do nada sobre ela, crescendo até se transformar numa esfera brilhante, como se a Deusa Sarenrae depositasse, de facto, um pouco do seu poder na mão do fiel. Ele voltou a baixar a mão e rodou a palma para baixo, pousando-a no peito da bebé. O corpo absorveu a luz.

Aguardaram, em silêncio. Aos poucos, a menina parou de tremer, todavia, as sobrancelhas do clérigo uniram-se ao meio da fronte, de tão franzidas. Algo não correra como ele previra.

De súbito, uma forte convulsão abalou o pequeno corpo, roubando-lhe um soluço. De imediato, a directora tirou a bebé de sob a mão do servo da Deusa, e agarrou-a contra si, tentando controlar-lhe os espasmos. Ao fim de alguns segundos, eles diminuíram e cessaram por si mesmos. Drane continuou com a criança abraçada ao peito, de lábios brancos de tão comprimidos.

– Directora – começou o homem, hesitando nas palavras. – Eu não… o feitiço… não consegui que a curasse.

Não obteve resposta. A mulher baixou o olhar para a criança, desencostando-a um pouco. Tocou-lhe no rosto com uma das mãos, depois no pescoço, e engoliu em seco. Fechou os olhos por um momento e Ay quase pensou que ela fosse desmaiar.

– Penso que agora já não podemos fazer mais nada, senhor – murmurou Drane, as pálpebras voltando a abrir-se e revelando um brilho húmido no olhar. – Mais nada.

Por um momento, Ayalal esqueceu-se do cheiro, da fome e do medo, enquanto fitava o pequeno corpo ainda nos braços da directora. Avançou, devagar, não conseguindo acreditar no que escutara. Parou ao lado do clérigo. O rosto da bebé descontraíra-se num repouso que já há dias não conseguia alcançar. Um repouso eterno.

O lábio inferior do rapaz começou a tremer e um aperto sufocante tomou-lhe a garganta. Ao contrário de Drane e do clérigo, não conseguiu conter as lágrimas pela vida inocente que acabara de se esvair.

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