Mosteiro das Sete Formas, 21 de Lamashan de 4592 AR (parte I) (um ano e um mês depois)


– É um anjo! Venham todos!

De mãos ainda dentro da tina onde lavava a roupa, Ayalal endireitou o pescoço e relanceou Myria. Era uma menina de 4 anos que raramente parava quieta, alimentada por uma energia que ninguém sabia muito bem donde vinha. Desta vez estava ofegante, como se tivesse corrido de uma ponta à outra da cidade.

– Um anjo? – Um dos órfãos, com quem Ay partilhava a tarefa, ergueu uma sobrancelha. – Não inventes…

– É verdade! – Os olhos da pequena brilhavam de puro entusiasmo. – Está na sala da senhora directora. Vi-as passarem.

O outro rapaz coçou a cabeça com uma mão molhada.

– Vou averiguar isso. Se for mentira… comes menos pão ao jantar – ditou, com o sorriso satisfeito de quem sairia vitorioso.

– Mas não é mentira – fungou a pequena, olhando depois para Ay. – Vem também!

Ele hesitou, de lábios entreabertos. Apesar de ter ficado um pouco curioso com o que Myria dissera, ainda assim preferia acabar aquela tarefa primeiro.

– Vão indo. Vou lá ter depois.

A pequena não fez questão de insistir e, sem mais demoras, partiu a correr pelo corredor. O outro órfão seguiu-a, não correndo mas, ainda assim, não conseguindo esconder a curiosidade no ritmo apressado dos passos. Ay olhou pela janela, pensativo. Nunca acreditara realmente que os anjos existissem, ou talvez acreditasse que existiam, mas que não eram tão simpáticos como os queriam fazer parecer. Encolheu os ombros e esfregou a roupa com mais vigor na água que haviam aquecido à lareira.

Os minutos passaram sem que nenhuma das crianças regressasse. Por fim, uma das jovens mais velhas que cuidavam deles parou junto à porta e pediu para que ele a seguisse até ao gabinete da directora. Uma estranha apreensão germinou-lhe no peito, ao ligar a chegada do suposto anjo com a necessidade da sua presença. Teria feito alguma coisa de mal? Um anjo viera do céu para o castigar? Seria melhor fugir? Talvez o mestre Yudarh o pudesse ajudar, no final de contas ele era uma espécie de demónio bom… Ay inspirou fundo e abanou a cabeça. Acabou por limpar as mãos às calças remendadas e seguiu-a, sem dizer nada.

Quando se aproximou do escritório, deparou-se com os restantes órfãos alinhados diante da porta encostada, os mais próximos tentando espreitar por uma fresta, enquanto segredavam entre eles. Encostou-se à parede, junto a uma rapariga um pouco mais alta que ele e esperou em silêncio. Por fim, a porta abriu-se e a Directora Drane saiu, lançando a todos uma expressão severa, antes de dar passagem à pessoa com a qual estivera a conversar.

Ay piscou os olhos, quase como ofuscado. Era a senhora mais bonita que alguma vez vira. O cabelo ondulado, que caía até ao nível cintura, lembrava um rio de ouro, e o rosto claro possuía uma estranha perfeição que não compreendia. No entanto, havia algo ainda mais surpreendente nela, aquilo que fizera Myria correr desenfreada até eles – duas asas com penas de um branco puro que lhe haviam nascido nas costas.

O anjo relanceou-os com dois olhos cuja cor lembrava o céu por cima das montanhas e sorriu.

***

Mosteiro das Sete Formas, 14 de Rova de 4591 AR (parte II)


As velas do altar diminuíram de tamanho com o passar do tempo. Quando o pequeno já parecia mais tranquilo, Lysa tirou do bolso um pedaço duro de pão.

– Foi o que consegui arranjar – murmurou, segurando-o à frente do rosto de Ayalal. – Mas ajudará um pouco a passar a noite, espero.

Ele pegou no pão com ambas as mãos, depois de um agradecimento, e mordiscou a côdea. Ficou em silêncio, olhando a comida, enquanto mastigava.

– Lysa, também te vais embora? – acabou por perguntar, sem a olhar.

A jovem piscou os olhos face à pergunta inesperada.

– Embora? Não…

– Mesmo se casares?

– Casar? Eu? – Uma risada tomou-a por um instante, porém acabou a abanar a cabeça em negação. – Ninguém iria querer casar comigo. Não sou propriamente bonita, nem interessante. – Levou uma mão ao rosto, tocando na cicatriz que a queimadura deixara. – Não, de todo.

– Eu casava – ditou Ay, erguendo o olhar para ela, muito sério, e até um pouco ofendido pela falta de autoconfiança. – Se fosse grande. És minha amiga, e eu gosto de ti. E és bonita, sim! De certeza que o mestre Yu concorda comigo. Mas vou perguntar-lhe da próxima vez que o vir.

Lysa tapou a boca com uma mão, abafando uma gargalhada, ao imaginar a cara de Yudarh ao ouvir uma pergunta do género. Esperava que a semideusa Andoletta não se incomodasse com tal comoção junto ao seu altar.

De bochechas insufladas, Ayalal deu uma dentada mais vigorosa no pão.

– Vou perguntar, sim. E não tem piada! – protestou, com um rubor marcado a tomar-lhe a pele pálida do rosto. – Para mim és a pessoa mais bonita do mundo.

– Oh, Ay, desculpa – murmurou, levando uma mão ao rosto e limpando uma lágrima que se formara num dos cantos dos olhos. – É só que… és amoroso.

– Não sou nada – rezingou, voltando o rosto para outro lado, envergonhado.

Lysa riu-se de modo mais controlado e envolveu-o nos braços, puxando-o para o seu colo.

– Se algum dia me for embora daqui, levo-te comigo – garantiu, encostando-o ao peito. – Como é que vivia sem o meu Ay para me proteger dos monstros maus?

A criança fitou-a, desconfiada, e ainda de bochechas inchadas, lembrando-lhe um esquilo a armazenar comida.

– O mestre Yu ainda não me ensinou nada para te proteger – rezingou, depois de engolir o pão que tinha, efectivamente, armazenado nas bochechas. – Ainda não sei magia…

– Um dia saberás – notou, passando-lhe uma mão pelo cabelo negro e prendendo-lhe uma madeixa atrás da orelha. – E serás um feiticeiro poderoso e gentil, que nos protegerá das coisas más. O que te parece?

Com uma certa timidez, Ay estendeu o pão para que Lysa desse também uma dentada, ao que ela acedeu.

– Vou ser isso – disse o pequeno, apesar de não muito confiante. – Um feiticeiro.

Conversaram por mais alguns minutos, até passar já da hora de Ayalal se deitar. Lysa levou-o ao quarto e, ao despedir-se, ofereceu-lhe um beijo de boa noite na fronte. Esperou que ele entrasse e encostasse a porta, antes de se afastar.

A maior parte das crianças já dormiam, tendo-se deitado após o jantar. Se não tivesse a capacidade de ver no escuro, Ay teria tido dificuldade em alcançar a sua enxerga. Andou com cuidado, tentando não fazer barulho, e, ao chegar ao destino, acocorou-se, levando uma mão à almofada, com intenção de tirar a roupa de dormir de sob ela. No entanto, ao tactear o tecido, uma humidade gelada tocou-lhe os dedos. A almofada estava encharcada. Tocou na roupa, na coberta, no lençol… estava tudo molhado.

O pedaço de alegria que Lysa plantara em si há poucos minutos evaporou-se. Ficou estático, olhando para a cama sem realmente a ver, chamando a si os bocadinhos de razão, pensando na amiga e em como ela ficaria desiludida se fosse mau para quem lhe fizera aquilo. Acabou por inspirar fundo e tirou toda a roupa da cama, arrastando-a para fora do quarto, até junto à lareira que ainda ardia na cozinha. Estendeu-a no chão, esperando que o calor a ajudasse a secar e deitou-se ali, encolhido, esperando que o cansaço o embalasse.

***

Mosteiro das Sete Formas, 14 de Rova de 4591 AR (parte I) (um ano e sete meses depois)


Um encontrão súbito fê-lo perder o equilíbrio e estremecer. A taça de estanho escorregou-lhe das mãos, caindo ao chão e espalhando o conteúdo por cima dos seus pés. Ayalal premiu os lábios e engoliu em seco.

– Ah, tens de ter mais cuidado… – O rapaz atrás de si soltou uma risada trocista. Um palmo mais alto do que ele, era um dos membros do grupo que, dia após dia, implicava consigo, causando-lhe todo o tipo de problemas. – Parece que hoje já não jantas.

Ayalal não lhe respondeu. Manteve a expressão mais fechada possível, fingindo não ouvir, e baixou-se para apanhar a taça. Lysa ensinara-o a não reagir, a não dar parte fraca e, ao mesmo tempo, a não se vingar. Ela dizia que a vingança só o tornaria em alguém mau. Afastou-se, seguido pelos olhares de outros órfãos e, depois de lavar a taça e tentar limpar os sapatos, foi buscar um pano encardido, acocorando-se junto à poça de sopa. As regras do orfanato eram estritas: em caso de acidentes do género, para aprenderem a não desperdiçar comida, não serviriam um novo prato – uma noite de fome ensiná-lo-ia a ter mais cuidado.

– Ay, o que estás a fazer?

O rapaz ergueu a cabeça, olhando para Lysa que acabara de chegar à cozinha.

– Entornei a sopa – murmurou, após uma hesitação, voltando a fitar o chão. Não era realmente uma mentira. Ela já se preocupava demasiado, não iria contar-lhe como é que o seu jantar desaparecera. – Estou a limpar.

Lysa ficou em silêncio, aquele silêncio de quem esperava uma resposta mais elaborada. Ay continuou a limpar, agarrando no pano com mais força. Uma mão pousou ao de leve sobre a cabeça do rapaz, fazendo-o pressionar mais os lábios quando o aperto no peito aumentou.

“Não sou um bebé, não vou chorar”, mentalizou-se.

– Sabes que estou aqui para te ajudar, podes confiar em mim – disse-lhe, baixinho.

E ele sabia. Lysa estivera sempre lá, deste que se lembrava, a dar-lhe a mão, a apoiá-lo.

Ayalal fez um aceno mudo, sem parar o que fazia, e Lysa acabou por se afastar, com um suspiro, para ir ajudar noutras tarefas.

Discretamente, o pequeno ergueu o olhar, observando-a. Na semana passada, uma das raparigas mais velhas casara-se com um carpinteiro da cidade e abandonara o orfanato. Vira-a a despedir-se das outras, e escutara a Directora Drane a congratulá-la por ter conseguido encontrar um marido, como se fosse a melhor coisa do mundo. Ele não achava que fosse.

Quando acabou, foi guardar o pano junto do lava-loiça e saiu subtilmente da cozinha. Caminhou devagar pelo corredor mal iluminado até uma pequena sala onde, sobre um altar de granito, ladeando uma bengala de salgueiro, ardiam duas velas, a única iluminação. Todos os órfãos, logo pela manhã, dirigiam-se até ali e oravam à semideusa Andoletta, a Avó Corvo, protetora dos inocentes. Era uma obrigação à qual não podiam escapar. Depois disso, saiam o mais depressa possível. Ele, pelo contrário, refugiava-se ali, quando não podia estar com Lysa. Era uma solidão estranhamente reconfortante, como se estivesse realmente alguém invisível a guardá-lo.

Aninhou-se num canto e abraçou os joelhos contra o peito. A seguir, murmurou uma oração à venerável semideusa, como pedido de autorização para que o deixasse ficar até ter de ir para a sua enxerga. Não obteve qualquer resposta, e, como sempre, tomou isso como um consentimento.

Os minutos passaram devagar. Passavam sempre. Do corredor chegou-lhe o som de passos e o roçagar de uma saia que pararam junto à porta, antes de entrarem e se aproximarem. A dona deles sentou-se ao seu lado, em silêncio. Ay hesitou meia dúzia de segundos, antes de inclinar o corpo contra o braço de Lysa, quase como se tentasse ser discreto, e sem coragem para a encarar.

– Tonto – murmurou Lysa, rodeando-o com o aconchego que ele pedia. – Não te escondas de mim, por favor.

***

Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4590 AR (parte V)


Envolto numa ligeira sombra mágica, Ayalal conteve a respiração por segundos, enquanto absorvia todo aquele novo mundo. Olhou para Lysa, depois olhou para o horizonte, e voltou a olhar para Lysa, sem palavras.

A jovem riu-se um pouco.

– É uma vista bonita, não é? O resto do mundo – notou.

– É – murmurou Ayalal, afastando-se três passos pelo carreiro pedregoso que descia a pique.

Os olhos de Lysa arregalaram-se, alarmada, e esticou a mão para o agarrar, porém Yudarh atravessou o bastão diante dela, impedindo-a.

Fascinado, o pequeno comtemplou a distância, o azul do céu, as suas nuvens de forma peculiar e, de olhos semicerrados, o próprio Sol. Voltou a escutar o pio agudo do falcão e desta vez viu-o, passando ao largo num voo lento. O bater daquelas asas transmitiam-lhe uma liberdade pura. De seguida, deu mais alguns passos pelo trilho, reparando noutra coisa. Derrapou uma vez, mas a curiosidade deu-lhe uma segurança extra, ajudando-o a equilibrar-se. Acocorou-se junto a uma pedra e ficou muito quieto a observar uma solitária flor. O vento sacudia-a, porém a resiliência da planta ultrapassava a óbvia fragilidade. Esticou um dedo e tocou, suavemente, nas pétalas vermelhas. Era, sem dúvida, o ser mais belo que alguma vez vira.

– É uma papoila. Podes levá-la contigo – disse Lysa que, com cuidado, fora espreitar o que lhe chamara a atenção.

– Não. – Ayalal abanou a cabeça. – Esta é a casa dela, vive aqui. Não posso tirá-la. Estaria a ser mau para ela.

Lysa não insistiu, gostando, na verdade, daquela demonstração de preocupação.

A poucos metros deles, Yudarh acabou por se sentar à entrada do túnel, lançando-lhes uma mirada serena, antes de perder os pensamentos no vasto horizonte.

As horas passaram. O Sol subiu mais no céu, até atingir o zénite, enquanto Ayalal fazia várias perguntas sobre o que conseguiam ver dali, o que é que vivia nas florestas… e quando é que poderiam ir ver o mar de perto.

Lysa abriu a boca, hesitando na última resposta.

– Isso… bem… quando fores mais velho.

Ay insuflou as bochechas.

– Amanhã já sou mais velho – notou.

– Ah, sou eu que decido quão mais velho tens de ser – riu-se Lysa. – E agora temos de voltar para casa.

– Já…?

– Já. O Mestre Yudarh usou esse feitiço duas vezes em ti, não devemos abusar da boa vontade dos outros. Voltaremos noutro dia – disse-lhe.

O pequeno fez beicinho, porém acabou por concordar com um aceno. Pouco depois faziam o caminho de regresso pelo túnel, deixando para trás a luz do dia.

Quando chegaram à encruzilhada, Yudarh fez sinal com o bastão para o caminho que os levaria à cidade.

– Podem regressar ao orfanato. – O tom era indiferente e seco, nada a que não estivessem habituados.

Lysa sorriu e fez uma ligeira vénia.

– Agradecemos por tudo, Mestre. Não é, Ay?

Ayalal mirou Yudarh, claramente hesitante, antes de se achegar, não tão subtilmente quanto gostaria, e lhe oferecer um súbito abraço ao nível das pernas.

– Obrigado, Mestre Yu – murmurou, antes de o largar tão depressa quanto o agarrara, indo, muito envergonhado, dar a mão a Lysa.

O tiefling não lhes respondeu. Ficou parado, vendo-os afastarem-se por um momento, antes de ele mesmo voltar aos seus afazeres. Ayalal ainda olhou para trás a tempo de o ver desaparecer pelo lado da encruzilhada que levava à escuridão.

***