Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4593 AR (parte II)


Quando, após o almoço, a cozinha do orfanato estava arrumada, os pequenos correram a irem buscar o único casaco remendado que tinham. Ay hesitou à porta da cozinha, após todos saírem, olhando para Lysa, enquanto apalpava com cuidado o conteúdo de um dos bolsos. O toque áspero do pergaminho percorreu-lhe os dedos. Também lhe queria dar um presente, porém talvez fosse melhor esperar até depois do jantar, depois do ambiente sossegar.

Imitou as restantes crianças e, depois de enrolar o cachecol no pescoço, certificando-se que ficava tão agasalhado quanto possível, esperou junto dos outros, à porta do orfanato. A Directora Drane chegou um pouco depois, parecendo contá-los com o olhar, e Lysa e outra das responsáveis vieram logo a seguir, sorrindo face ao entusiasmo que viam na maioria dos rostos.

Não tardaram a seguir em grupo pelas ruas, levantando olhares curiosos, enquanto avançavam em direcção à praça principal da cidade subterrânea. Uma corrente de ar gélida soprava através dos túneis, trazendo consigo a lembrança da neve que de momento deveria cobrir mais do que os picos das montanhas.

Muito subtilmente, Ayalal esticou a mão até segurar a de Lysa, deixando-se guiar em silêncio. As outras crianças falavam entre si; as que raramente saíam do seu lar apontavam bancas, casas, e até algumas pessoas de aspecto mais peculiar, como um grupo de quatro halflings que passava por eles com mochilas às costas, bordões em punho, e pequenas espadas à cintura.

Nem um quarto de hora depois, chegavam à praça. Fora montada uma pequena tenda num dos lados do círculo de chão empedrado com um toldo e uma bancada sobre a qual se fechava uma cortina feita de losangos coloridos. Vários caixotes de madeira dispunham-se em seu redor, de forma que os espectadores se pudessem sentar para assistir ao espetáculo, deixando atrás destes uma zona em que poderiam haver espectadores de pé, e ainda uma terceira área, à frente dos caixotes, onde se poderiam sentar no chão. Foi para essa última zona que as crianças foram levadas. Ay ficou numa das pontas, olhando expectante para a cortina. Por trás dela escutavam-se vozes baixas, das quais era impossível perceber o que diziam.

Foram chegando mais espectadores que se acomodaram atrás deles. Alguns perguntavam pouco discretamente donde viera toda aquela criançada. Ay lançava-lhes um olhar por cima do ombro, quando o som rápido do dedilhar das cordas de um instrumento musical se fez ouvir, captando a atenção de todos. A cortina abriu-se devagar, revelando uma marioneta de nariz comprido que nas mãos simples segurava um pequeno alaúde. A voz do boneco era fina e nasalada, enquanto em rimas divertidas se apresentava ao público como sendo um célebre menestrel que corria o mundo em busca de histórias sobre valentes cavaleiros e cavaleiras, donzelos e donzelas, terríveis deuses do mal, dragões, gigantes de pedra e magias que iam além do que se poderia imaginar. Quando falou das últimas, pequenas faíscas coloridas saltaram em seu redor, roubando inspirações estupefactas e exclamações excitadas à plateia.

As crianças observaram, maravilhadas, enquanto outras personagens, articuladas por cordões, foram surgindo, e a história sobre o terrível e maléfico dragão branco que vivia no pico mais alto do reino – que por sinal não era longe dali – se desenrolava, a música do alaúde tornando-se mais intensa. A marioneta em forma de dragão cuspiu meia dúzia de luzes esbranquiçadas, que deixaram o grupo de guerreiros e o próprio menestrel com pingentes de gelo por todo o corpo, o que roubou uma animada gargalhada a todos, inclusive ao próprio lagarto gigante, num tom roufenho.

Por fim os valentes guerreiros conseguiram derrotar o vil dragão, usando um estratagema que o levou a congelar-se a si mesmo, para depois ser partido ao meio pelo guerreiro maior e mais forte. Todos aplaudiram e os três bonecreiros que tinham controlado os fantoches saíram de trás do palco e fizeram amplas vénias perante eles. Moedas foram depositadas dentro de um chapéu que passou por entre os espectadores e regressou a um dos artistas que agradeceu a generosidade.

Apesar disso, Ayalal já não lhes tomava atenção. Esta fora desviada para um miar baixo, não muito longe de si. Um gato de pelagem suja passava a não mais de um metro deles, coxeando da pata da frente, de cabeça e cauda baixas. Os ossos projectavam-se por entre a magreza doentia. O rapaz hesitou, enquanto o sentia encolher-se a cada passo que se forçava a dar.

Ergueu-se, sem tirar os olhos do animal e aproximou-se devagar, não se dando ao trabalho de tentar silenciar os passos, para o gato dar pela sua presença. O animal olhou-o com dois orbes de um azul intenso, desconfiado.

– Não te quero fazer mal – murmurou Ay, apesar de estar consciente de que o animal não o entenderia.

No momento em que estendeu as mãos para o tomar nos braços, o animal soltou um silvo, o dorso arqueando-se e assustando o rapaz que recolheu os braços contra o peito. O gato partiu numa súbita corrida frenética, por entre os pés das pessoas que andavam por ali. Ayalal ficou chocado por um segundo, antes de partir a correr atrás do animal.

– Espera! – pediu em voz alta, tentando não perdê-lo de vista.

O gato entrou por uma ruela, para a qual Ay virou também. A luz ali era fraca e não havia uma vivalma à vista. Conseguiu ver a cauda do animal, quando este virou para uma segunda rua. Ofegou, correndo até lá, e acabando por descobrir um beco sem saída. O animal havia saltado por cima de uma pilha de caixotes, até ao topo de uma das casas de pedra que ladeavam as ruas. O rapaz parou junto do primeiro caixote. Lá de cima, o gato lançou-lhe um olhar penetrante, antes de desaparecer.

Ay soltou um suspiro e deixou que os ombros descaíssem. Desistia da perseguição. Não podia obrigar-se a tentar ajudar o animal, mas tinha pena. Tendo em conta o seu aspecto, o gato acabaria certamente por morrer.

Deu meia volta, desalentado. Porém, estacou, e o sobrolho franziu-se. À entrada do beco estavam três homens parados a olhar para si. Um deles era alto, de ombros largos e peito amplo, e o cabelo rapado revelava a marca esbranquiçada de uma cicatriz. Outro era magro e mais baixo – pareceria inofensivo, não fossem as duas adagas que empunhava. O terceiro, de espada à cintura e mãos apoiadas na cintura, era um meio-termo entre os primeiros. E sorria-lhe.

– Encontrámos a cria de vampiro – anunciou.

*

Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4593 AR (parte I)


Nessa manhã todos acordaram cedo e ninguém molengou pela cozinha enquanto tomavam o pequeno-almoço. Durante a tarde haveria uma espetáculo de fantoches na praça principal da pequena cidade subterrânea e, após vários pedidos e choramingos, a Directora Drane permitira que pudessem ir se, e só se, as tarefas diárias estivessem concluídas.

Apesar de as crianças mais velhas poderem sair sozinhas para fazer pequenas tarefas, a maioria era obrigada a ficar dentro das paredes de pedra do orfanato, até uma das raparigas mais velhas se decidir a levá-los consigo até ao mercado ou a um dos pequenos templos. Por isso aquilo seria uma dupla oportunidade. Ayalal e duas outras meninas da mesma idade que ele eram a excepção: tinham autorização para sair do seu lar e ajudar em pequenos recados. No caso do rapaz, essa autorização incluía as aulas com Yudarh. Ay não estava certo de como Lysa conseguira convencer a directora a dispensá-lo durante tanto tempo, no entanto as crianças que não auferiam dessa benesse tinham acabado por juntar um novo factor à inimizade para com ele. No entanto, ali estava uma hipótese para todos poderem sair e divertirem-se.

O rapaz acabou de lavar as tigelas das papas de aveia do pequeno-almoço e saltou de cima do banco baixo que o ajudara a chegar melhor à tina de água fria apoiada na bancada. Abriu uma das portadas da janela e regressou para pegar na tina com ambas as mãos, indo despejá-la. A seguir voltou a enchê-la de água limpa para lavar alguma roupa encardida.

Enquanto estava distraído a esfregar uma camisola, Lysa espreitou-o da entrada da cozinha por um momento, antes de se encostar à parede a observá-lo com um sorriso leve. Por fim, acabou por se aproximar.

– Tão concentrado que estás na tua tarefa – notou.

A criança sobressaltou-se, tirando as mãos da água e erguendo o olhar cor de violeta. Sossegou ao ver quem era e sorriu-lhe.

– Estava a pensar nas aulas do mestre Yudarh – confessou, afastando dos olhos um bocado da franja que começava a ficar demasiado comprida. – A treinar mentalmente.

– Treinar as letras mentalmente parece complicado – comentou Lysa, arqueando as sobrancelhas. Parou ao lado de Ayalal, fitando por um momento as peças de roupa que ele havia já lavado e que estavam prontas para pendurar junto à lareira. – Eu ajudo-te com isto, para te despachares mais depressa.

O rapazito torceu o nariz face à oferta da amiga. Não que a ajuda não fosse bem-vinda, no entanto…

– Se os outros te virem vão dizer que estou a fazer batota – fez ver.

– Mas… hoje é o teu sétimo aniversário – lembrou, como quem não queria nada. – Como pequeno presente, mereces ter menos trabalho. Quer os outros gostem, quer não.

Deu-lhe um beijinho rápido no cabelo negro, antes de pegar na roupa e a levar para junto da lareira. Ainda hesitante, mas mais contente, Ay acabou aquela tarefa e levou a última peça de roupa até Lysa que, depois de a pendurar, apoiou as mãos de cada lado da cintura, com um sorriso amplo.

– Tarefa cumprida – notou, baixando o olhar para ele. – Agora podemos descansar um pouco, e depois ajudas-me com o almoço. O que achas?

A ideia de descansar agradou particularmente ao rapaz que tinha os braços doridos de esfregar tanto a loiça como a roupa. Lysa puxou dois bancos para junto da lareira, donde a tentação do calor os chamava, e sentaram-se, de pés esticados na direcção das chamas vivas. O frio do Inverno soprava através de qualquer fresta que conseguia encontrar.

– Como será o espetáculo? – perguntou Ay, curioso, enquanto imaginava a forma dos fantoches e os seus coloridos. – Será que têm uma história para contar?

– Ora, certamente que sim. Se não tivessem não seria interessante – respondeu a amiga, remexendo no bolso largo do avental que usava sobre a saia. – Mas acho que vai estar bastante frio lá fora quando formos, por isso…

Tirou do bolso uma longa tira de tecido cor de violeta, cujas extremidades acabavam em finas tranças, e estendeu-lha. Ayalal piscou os olhos e abriu a boca numa exclamação muda, antes de estender as mãos pequenas para o cachecol. Sentiu nos dedos o toque áspero mas simultaneamente fofo da lã e levou-o até ao rosto, fechando os olhos para apreciar melhor aquele presente.

– Obrigado, Lysa – murmurou, roçando a face no tecido. – Adoro-o.

– Então experimenta-o – sugeriu, observando-o com carinho. – Achei que iria condizer com os teus olhos.

Ayalal fez como ela dissera, e enrolou o cachecol em redor do pescoço, aconchegando-o bem e sorrindo de orelha a orelha, tão claramente feliz que uma pontada de comoção alagou o olhar de Lysa com lágrimas mornas. Se fosse possível, gostaria que ele tivesse sempre aquela expressão no rosto. Faria por isso, tanto quanto pudesse.

A jovem levou as mãos ao cachecol e ajeitou-o melhor, agarrando depois numa trancinha de lã, a qual aproximou de súbito do rosto do rapaz para lhe fazer cócegas. Ay encolheu o pescoço, a boca desaparecendo dentro do tecido, ao mesmo tempo que uma gargalhada lhe fugia. Lysa riu-se com ele e acabou por lhe oferecer um beijo terno sobre a fronte.

– Feliz aniversário, meu pequenino – murmurou contra a pele ebúrnea do rapaz.




*

Mosteiro das Sete Formas, 10 de Kuthona de 4592 (parte III)


O rosto do rapaz contorceu-se numa careta.

– Não foi simpático…

– Não é nada a que os meus anos de vida não me tenham habituado – notou, olhando Ay por um segundo. – Não me ofendeu e respondi-lhe com a verdade, que estava a cuidar dela, que não queria nada em troca, que estava num lugar seguro onde ninguém lhe poderia fazer mal, e que não a deixaria sair, para já, porque poderia correr perigo. Era óbvio que a Lysa não conseguia acreditar totalmente, mas também não sabia bem o que pensar a meu respeito, o que criava um impasse na sua mente. Apesar de ainda me temer, tentou aproximar-se, porém qualquer movimento brusco da minha parte fazia-a ressaltar-se e encolher-se. Por vezes deixava-a sozinha, para que tivesse o seu espaço, os seus momentos a sós. Das primeiras vezes fiquei simplesmente invisível, na mesma sala, com medo do que ela pudesse fazer ao perceber que não havia mais ninguém junto dela. No primeiro dia a Lysa limitou-se a ficar na cama, abraçada a si mesma, enquanto os soluços lhe apertavam a garganta; no segundo, houve uma primeira fase de choro, depois pareceu falar consigo mesma e recompôs-se o suficiente para explorar o que havia aqui; no terceiro, pegou num dos livros e ficou a ver as ilustrações, sentada na cama. Nunca pediu para sair de casa comigo ou perguntou o que havia lá fora, e só muito aos poucos começou a fazer perguntas sobre mim, até que acabou por se habituar à segurança que um desconhecido como eu lhe poderia oferecer. Demorou quase duas semanas, até conseguir que me dissesse o que lhe acontecera e quem lhe fizera mal. Das primeiras vezes a Lysa começava simplesmente a chorar ou escondia-se sob o cobertor e não dizia mais nada durante mais de uma hora. Por fim disse-me, meio aos soluços, de mãos enclavinhadas uma na outra e a tremer, da forma como aquele a quem chamava pai a usava, e não só ele; como a mãe virava o olhar e se afastava, sem sequer tentar impedir o que lhe faziam; como a magoavam… eu vira as nódoas negras quando a examinara, assim como as marcas de dedos e dentes nos braços magros e no pescoço.

Ay passou uma mão pelo rosto, já esquecido do chá. As lágrimas picavam-lhe os olhos.

– Como… como é que podem fazer… isso? Porquê, mestre?

Yudarh ficou em silêncio por um instante.

– São almas perversas, Ayalal. Fazer o mal dá prazer a demasiadas criaturas deste mundo – murmurou, a contragosto. – E eu tinha em mãos uma criança que passara por tudo isso. A Lysa contou-me que fugiu do acampamento em que vivia, no sopé da montanha, na mesma noite em que sofreu a queimadura do rosto. Tentara escapar-se a um dos abusos do pai e, na fuga, acabou por tropeçar e cair meio dentro de umas das fogueiras. Apesar disso, o pai espancou-a e deixou-a inconsciente do lado de fora das tendas. Quando voltou a si, a noite ia alta, e o homem encarregue da vigia adormecera. Não obstante o medo do que lhe poderia acontecer se a encontrassem, fugiu montanha acima.

– E o mestre encontrou-a e salvou-a. Se não…

Yudarh fez um leve aceno de concordância.

– Depois disso fiz por encontrar o acampamento e puni quem tinha de punir. Antes de sair disse-lhe o que ia fazer, quando regressei disse-lhe o que fiz. Não era um remédio para a sua alma, mas, a longo prazo, esperava que lhe apaziguasse os medos. A Lysa viveu comigo durante mais quatro meses, até a levar para o orfanato e entregar ao cuidado da Directora Drane. Ela sentiu-se um pouco traída por eu o ter feito e ficou chateada… mas isto não é lugar para uma criança crescer e já passara demasiado tempo comigo. Precisava de ter contacto com outras pessoas e enfrentar o medo, e eu tinha a certeza que ela o conseguiria.

O tiefling acabou de falar com um sorriso leve nos lábios, de algum modo reflectindo um misto de prazer paternal e tristeza pelo conjunto de acontecimentos que haviam traçado o caminho de Lysa até ele.

*

Não muito depois, Ay voltou ao orfanato com toda a história a ebulir-lhe na mente de criança. Não conseguia perceber por que razão havia pessoas tão más no mundo, o que ganhavam em causar sofrimento aos outros, e porque é que nenhum deus os impedia. O que é que os Todos Poderosos tinham de tão importante para fazer? Rezingou para si e, distraído com os pensamentos, tropeçou no segundo degrau.

Mal entrou, procurou pela amiga na cozinha e, não a encontrando, subiu ao andar de cima. Ao vê-la ao fundo do corredor, correu para ela e abraçou-a pela cintura.

Lysa piscou os olhos, sem perceber ao que se devia aquela súbita demonstração de afecto.

– Estás bem, Ay? – perguntou, pousando-lhe uma mão no topo da cabeça.

O rapaz ergueu o rosto e sorriu, o olhar brilhando de carinho.

– Estou. Gosto muito de ti, Lysa. Mesmo muito.

Sensibilizada pela confissão inesperada, a jovem retribuiu o sorriso e ajoelhou-se no chão para melhor o abraçar contra o peito, deixando-se ficar assim por longos e sentidos segundos. Ayalal afagou-lhe o cabelo castanho com cuidado. Duvidava que a amiga tivesse alguém que a acarinhasse de alguma forma, até conhecer Yudarh. E, depois disso, fora viver com um grupo de estranhos. Ele não conseguia sequer imaginar quão assustada Lysa não estaria, quão sozinha e desprotegida. Apertou-a melhor.

Mosteiro das Sete Formas, 10 de Kuthona de 4592 AR (parte II)


O mestre acabara por se levantar, trazendo duas chávenas para a mesa e a chaleira que pusera ao lume e que agora emanava um agradável perfume a cidreira. Serviu-os e, pouco depois, Ay pôs de lado o pergaminho e agarrou na sua chávena com ambas as mãos. Apesar da lareira acesa, o calor não era suficiente para lhe aquecer os dedos.

– Obrigado – murmurou, chegando-a até ao rosto para inspirar o vapor. Deu um golo pequeno, deixando que o líquido criasse um trilho quente até ao seu estômago, donde o calor se difundiu para as restantes partes do corpo.

Yudarh voltou a recostar-se na cadeira, com um sorriso leve nos lábios.

– Não me agradeças. Se morreres de frio no meu tugúrio, a Lysa mata-me – brincou um pouco, voltando a pegar do livro de poesia.

O pequeno riu-se e abanou a cabeça.

– Ela não seria capaz – notou, observando a superfície trémula da infusão, enquanto a imagem de uma Lysa determinada e furiosa lhe passava pela mente. Parecia tão diferente daquele estranho episódio, dias atrás, deitada na sua enxerga, febril. – Mestre… quando a Lysa esteve doente, sabe do que é que ela queria fugir?

O meio-demónio acabara de estender a mão livre para a chávena, porém deteve-a a meio caminho. A fronte enrugou-se ao franzir as sobrancelhas. Os orbes de íris vermelha avaliaram-no.

– O que queres dizer com isso, Ayalal?

O rapaz inspirou fundo, continuando a observar a chávena como se tivesse um sincero interesse na cerâmica simples com que fora feita.

– Durante as alucinações a Lysa chorou e gritou, aterrorizada. Implorou. Estavam a fazer-lhe mal… muito mal – acrescentou, o sorriso completamente desaparecido da sua expressão. – Falou no pai e na mãe, tentou fugir… literalmente.

– Perguntaste-lhe alguma coisa a esse respeito, depois de ela melhorar? 

Ay abanou a cabeça numa negativa, e pressionou os lábios por um momento, antes de responder.

– Não fui capaz – confessou. – E achei que lhe pudesse fazer mal pensar nisso. Acho que não se lembra de que teve alucinações.

Yudarh acenou, puxando a chávena para perto de si com uma garra. Àquela proximidade, deixou que um dedo circundasse o rebordo.

– Foi uma decisão sábia, rapaz – murmurou. – Esse é o tipo de fantasma que deve permanecer enterrado, para o bem dela. Se não consegue ultrapassá-lo, a Lysa precisa de o esquecer tanto quanto possível.

Ay franziu as sobrancelhas, preocupado.

– E ele não virá até aqui? O pai dela?

– Em corpo não vem. Se vier em espírito, farei questão de voltar a matá-lo. – Uma fria resolução tomou-lhe conta do olhar. Não havia ali qualquer piedade, nenhuma dúvida no passo a seguir. O rapaz teve então percepção do quão implacável Yudarh poderia ser.

– Então o mestre salvou-a? – murmurou.

– Não… Em parte. Não matei o pai dela para a salvar, matei-o porque não merecia viver. A Lysa era um pouco mais velha do que tu, tinha uns 8 anos, quando a encontrei a vaguear na montanha. Era um farrapo quase varrido pelo vento, parte do rosto em carne viva, as roupas manchadas de sangue e pó, queimadas num dos braços… tentou fugir de mim quando me viu, completamente aterrorizada.

Ay ergueu o olhar para os chifres do meio-demónio e pensou nos restantes pormenores mais demoníacos, percebendo muito bem como a amiga se poderia ter assustado ao encontrá-lo.

– Como é que a convenceu de que não queria fazer-lhe mal?

– Não convenci – O sorriso dele foi simultaneamente triste e irónico. – Lancei-lhe um feitiço para que adormecesse, antes que caísse da vertente abaixo, e trouxe-a para minha casa. Tentei mantê-la adormecida tanto quanto possível, enquanto lhe tratava dos ferimentos e da exaustão. A cicatriz do rosto não teve remédio. Sarou, mas acho já tinha demasiados dias para que não deixasse marcas.

O tiefling deu um golo no chá, mais pensativo do que propriamente perturbado com o assunto, enquanto relembrava os pormenores.

– Obviamente, e como descobri pouco depois, os danos físicos eram o menor dos seus males. Não a poderia manter eternamente a dormir, por isso, ao fim de dois dias, deixei que os efeitos do soporífero passassem por si mesmos. Quando tomou suficiente consciência de si, o terror regressou. Olhou em volta, como se algo pudesse saltar sobre ela a qualquer momento – fez um gesto para o compartimento em seu redor –, até que se apercebeu da minha funesta presença. Nesse momento, os olhos dela arredondaram-se muito e recuou contra a parede, parecendo querer fundir-se com a pedra. Encolheu-se, dando-lhe um aspecto ainda mais pequeno. Nessa altura, não tentou fugir, mas a forma como o olhar saltava entre mim e a saída nas minhas costas era óbvia. Deixei-a habituar-se à minha presença, antes de tentar falar com ela. Quando falei, não me respondeu. Podia não perceber a minha língua, mas isso não conseguia adivinhar. Em todo o caso, não me aproximei, dei-lhe o seu espaço, e ela ficou à espera. Quando lhe virei as costas para ir à estante, ouvi-a levantar-se, tentar ser discreta e encaminhar-se para a saída. Deixei-a ir. Ela experimentou todas as portas, cada uma delas trancada. Ainda assim, com o desespero, tentou forçá-las.

– Mas não conseguiu – Ay murmurou o óbvio, enquanto observava o mestre com atenção.

– Não. Ao fim de um bocado ouvi-a parar com as tentativas, e no entanto não regressou para junto de mim. Pedi-lhe para voltar, mas ela manteve-se à porta. Não insisti nem fui ter com ela, mas disse-lhe “as portas estão fechadas com magia, só eu as consigo abrir”. Não tenho a certeza se acreditou, mas houve mais tentativas de arrombar a porta principal. Deixei-a. Algum tempo depois aproximei-me só o suficiente para lhe deixar uma tigela de caldo no chão e um cobertor, e a Lysa só não trepou pelas paredes porque não conseguia. Durante três dias foi este o nosso relacionamento, e só me consegui aproximar dela usando invisibilidade, para ter certeza de que não se tinha magoado com as tentativas de fuga. A Lysa acabou por interiorizar que não conseguiria sair sozinha e que, se eu lhe quisesse fazer mal, já o teria feito. Com muita cautela, acabou por se aproximar. – Sorriu um pouco e abanou a cabeça. – A primeira coisa que disse foi: o que queres de mim, monstro?

*

Mosteiro das Sete Formas, 10 de Kuthona de 4592 AR (parte I)


Desde que Yudarh se oferecera para o ensinar que, dia sim, dia não, Ayalal passava duas horas diárias com o tiefling. Lysa, tendo uma série de tarefas no orfanato, era incapaz de estar presente na maior parte das aulas, por isso o rapaz subia sozinho até à casa do mestre. Yudarh não era propriamente um professor paciente, no entanto Ay era um aluno sossegado e isso, em parte, complementava cada uma das personalidades. Em adição, o rapaz aprendia depressa e era subtilmente curioso – expunha as suas dúvidas e curiosidades, sem insistir demasiado, e conseguia perceber pela expressão do mestre quando estava a pisar terreno perigoso.

– O pendente em forma de espada… – Ayalal estava sentado à mesa e segurava um pedaço de carvão com o qual desenhava duas letras do alfabeto repetidamente. Não olhava para o Yudarh enquanto falava. – O que é?

Sentado ao lado dele, o meio-demónio amparava um livro fino sobre o colo. Era o que normalmente o ocupava enquanto o pequeno praticava os seus exercícios de escrita. Escrito de forma diferente do normal, o mestre dissera-lhe que era de poesia.

– É um símbolo sagrado. Alguma da magia que pratico é de inspiração divina, por isso preciso do símbolo da divindade a quem presto a minha veneração – explicou Yudarh, lançando-lhe uma mirada. – Não imaginei que ainda te lembrasses dele.

Ayalal sorriu um pouco. Lembrava-se perfeitamente do feitiço que o meio-demónio usara meses atrás, e da forma como o pendente parecera brilhar dentro da mão cerrada de Yudarh.

– Então… é uma espécie de clérigo? Curou aquela gente toda no orfanato – notou.

Não obteve uma resposta imediata. O rapaz hesitou numa das letras, pensando para si se seria altura de mudar de assunto.

– Mais ou menos. Sou um bocadinho mais sombrio do que isso – respondeu, a voz baixando de tom. – Sou, ou era, um inquisidor, alguém que persegue os inimigos da sua fé.

Houve um novo silêncio, em que Yudarh pareceu pensar em algo mais e Ayalal retomou a escrita. O mestre conseguia perceber o cuidado que o aluno tinha para não cometer qualquer erro.

– Então… matava pessoas que não acreditavam na sua fé? – acabou o pequeno por perguntar.

– Não. Só os que eram inimigos dela, e nem sempre os matava – respondeu Yudarh, voltando a baixar a atenção para o livro. – A entidade divina que venero chama-se Iomedae, é uma semi-deusa e Arauto do deus Aroden.

Ay voltou a parar de escrever, desta vez erguendo o olhar, curioso por saber mais.

– Como é ela?

A questão arrancou uma pequena risada ao tiefling.

– Não é como se eu a conhecesse pessoalmente, mas Iomedae era uma feroz combatente contra as forças do mal, uma defensora da justiça, do valor, da honra e do bem – disse, passando uma mão pela lombada do livro. – É uma divindade inspiradora.

O pequeno fez um aceno, apoiando o rosto numa mão, enquanto pensava no assunto.

– Isso faz com que o mestre mate seres maus – notou. – Para proteger pessoas. É o que faz aqui na cidade, não é? É por isso que nenhum monstro chegou até aqui, porque o mestre luta contra eles. É um herói mas ninguém sabe. É injusto.

Yudarh fechou o livro, esticou o braço e bateu com ele ao de leve na cabeça do seu aluno.

– Seria injusto se eles soubessem o que se passa, mas não sabem, nem devem saber, para manterem a preocupação distante dos seus corações. Que se preocupem somente com ladrões e assaltantes e deixem os monstros para os pesadelos nocturnos. Por vezes a ignorância pode ser uma bênção. Para além disso – acrescentou, tirando o livro de cima da cabeça de Ayalal –, eu não quero esse reconhecimento, não sou herói nenhum. Faço o que consigo e posso com os poderes que tenho, nada mais.

– E com a ajuda do seu bastão. – Ay lançou um relance à arma mágica com as suas estranhas inscrições a negro, encostada à estante. Pelo canto do olho, conseguiu aperceber-se de que o mestre soltara um suspiro silencioso. Perscrutou-o com mais atenção. Seria tristeza que o seu olhar vermelho reflectia?

O rapaz pressentiu que havia ali uma história por contar, mas não se sentiu no direito de insistir. Regressou ao seu pergaminho, em parte arrependido por ter falado do bastão, em parte curioso por o que se esconderia naquele suspiro. Tentaria perguntar a Lysa, talvez a amiga soubesse.

*

Mosteiro das Sete Formas, 1 de Kuthona de 4592 AR (parte I)


Ay pegou numa pequena cesta que estava guardada na despensa, indo ter com Lysa à porta principal, meio a correr. Quando a alcançou, deu-lhe a mão e saíram para a cidade.

Nos dias que se seguiram à vinda de Yudarh, Ayalal não voltara a sentir a estranha presença fantasmagórica. Tal como antes, ajudara nas tarefas do orfanato, porém com mais ânimo, devido às melhoras que os feitiços haviam operado na sua amiga. O estranho de nome Dariun, após a sua terceira visita ao orfanato, despedira-se, sem aceitar qualquer pagamento por parte da Directora, e nunca mais fora visto nas redondezas. 

No primeiro dia em que Lysa se pudera levantar e andar pela casa, tinham ido ambos rezar a Andoletta. Durante esse momento a sós, Ay contara-lhe a respeito de quem os havia ajudado. Omitira a parte da criatura que quase o devorara – ela não precisava de mais essa preocupação, nem de saber que as lendas sobre garras sem dono que puxavam quem passava para a escuridão eram mais do que imaginação. E agora que Lysa estava quase recomposta, poderiam ir visitar Yudarh.

Pelo caminho, pararam junto a uma banca e compraram meia-dúzia de peças de fruta com algum dinheiro que Lysa juntara nos últimos tempos. A grande maioria dos alimentos vendidos na cidade era dispendiosa, devido ao processo de importação que sofria. Não crescia muito mais do que fungos e líquenes sob os cumes das Montanhas da Beira do Mundo, e sobre eles o ambiente era demasiado inóspito para a maioria das plantas e animais perdurarem, exceptuando num lugar. Na superfície existia um antigo mosteiro de monges, o qual dera o nome à cidade. Ayalal ouvira dizer que, no seu interior, havia um maravilhoso jardim habitado por árvores milenares capazes de tocar a Esfera Exterior, onde os deuses habitavam. Os seus frutos eram por isso abençoados, e só os monges se alimentavam deles.

Suspirou, enquanto via Lysa pagar pela fruta meio enfezada. Seguiram então caminho até casa do mestre Yudarh. Quando atravessaram a encruzilhada, Ay fitou o túnel onde a escuridão densa se perdia de vista. Dentro de si revolvia-se um sem número de questões a respeito de todo o tipo de coisas que poderiam viver nas profundezas e de que forma Yudarh as mantinha afastadas da população dispersa da cidade, se teria ajuda de outros guerreiros ou magos… e se o seu pai poderia viver ali. Não tinha a certeza se queria saber a resposta a essa última questão.

Lysa bateu à porta e esperaram. Passaram-se talvez dez minutos, até Yudarh aparecer. Ay perguntou-se se ele faria de propósito para demorar tanto tempo, de forma a desencorajar as visitas; se estaria a fazer algum tipo de experiência e precisaria de tempo para arrumar os utensílios mágicos; ou se simplesmente estaria a dormir.

O meio-demónio olhou de um para o outro, com a sua expressão quase sempre séria e desagradada. Lysa respondeu-lhe com um sorriso amplo. Ele acabou por revirar os olhos e soltar um suspiro, dando-lhes passagem, sem qualquer palavra, antes de fechar a porta atrás de si.

– Trouxemos alguma fruta. Precisa de se alimentar bem, mestre – notou Lysa, quando entrou na sala. Ay pousou a cesta sobre a mesa, enquanto lançava uma mirada curiosa em redor. Encontrou o bastão, que agora sabia ser realmente mágico, encostado no canto do costume.

Yudarh parou junto da mesa, espreitando o interior da cesta antes de fitar os recém-chegados com uma certa descrença.

– Não sou eu que preciso de me alimentar bem, Lysa – fez notar. – És tu e esse pequeno pirralho.

– Nós alimentamo-nos – garantiu Lysa. – Mas queremos agradecer-lhe pelo que fez. Isto não é nada comparado com as vidas que salvou. É só… um pequeno gesto. Por favor, mestre.

Yudarh coçou uma bochecha com as garras de uma das mãos e acabou por fazer um gesto resignado para que deixassem ficar a fruta por ali.

– Já que vieram, sentem-se. Vou fazer-vos um chá – disse, voltando-lhes as costas e dirigindo-se a um armário.

Lysa e Ayalal entreolharam-se, estupefactos. Aquela atitude era, decerto, estranha. Ele nunca lhes oferecera um chá.

Yudarh pôs ao lume uma chaleira com água, antes de voltar para junto deles. Fitou Lysa com mais atenção.

– Como te sentes?

– Muito melhor. Tenho os músculos ainda doridos – confessou a jovem, apoiando os braços na mesa. – E não consigo fazer esforços durante muito tempo. Mas, tirando isso, estou bem. Devo-lhe isso.

– Não fiz mais do que aquilo que estava ao meu alcance. Não foi nada particularmente difícil – notou, desviando a atenção para a criança entre eles. As suas íris de um vermelho intenso perscrutavam-no de forma tão intensa que a criança baixou o olhar. – O Ayalal fez muito mais do que eu, e é graças a ele que estás viva.

– Não – murmurou Ay, abanando a cabeça, enquanto fitava as mãos. – Foi eu que causei a doença, não fui? Não foi o rato, pois não?

Uma das sobrancelhas do tiefling ergueu-se, enquanto Lysa piscou as pálpebras, incrédula.

– Podes repetir, Ayalal? – As garras de Yudarh tamborilaram sobre a mesa, produzindo um ruído que, no silêncio, parecia quase uma ameaça.

O rapaz encolheu o pescoço e as mãos crisparam-se nos joelhos.

– Foi culpa minha, por eu ter sangue de vampiro. Devo ter passado alguma doença…

– Oh, pelos deuses, rapaz! Que raio de ideia é essa? – perguntou Yudarh, erguendo-se num movimento rápido.

Ay encolheu-se mais, temendo que ele lhe fosse bater, porém o tiefling afastou-se com passos largos até à estante que continha a sua colecção de livros. Correu os olhos pelas lombadas e acabou por tirar um tomo pesado. Abriu-o nas primeiras páginas, folheando-o depressa. Depois voltou à mesa e pousou-o diante da criança.

– Vês aqui alguma coisa que diga que os vampiros, por defeito, sejam portadores de doenças contagiosas? – perguntou-lhe, sem paciência.

A criança espreitou o livro, olhando primeiro para uma bonita mas já antiga ilustração de um homem de porte elegante, muito pálido e de incisivos salientes. Depois olhou para a restante página cheia de palavras escritas numa letra fluída.

– Ah, mestre Yudarh… – Lysa ergueu um dedo, fazendo-o desviar a atenção para si. – As Letras não são ensinadas às crianças do orfanato. O Ay não sabe ler.

Yudarh respirou fundo e fechou os olhos por um segundo, pousando dois dedos na fronte.

A voz de Ayalal soou a medo, baixinho.

– Pode ensinar-me, mestre?

O crepitar do fogo acompanhou o silêncio que seguiu a questão. Lysa olhou para o interpelado, expectante.

Yudarh desviou o olhar para a chaleira cuja água começara a ferver. Passou uma mão pelo cabelo branco e rangeu os dentes. Nesse instante, a sua expressão pareceu perder parte da severidade, como se ele próprio estivesse cansado dela.

– Posso tentar, Ayalal.

*

Mosteiro das Sete Formas, 22 de Neth de 4592 AR (parte I)


Ay acordou com um estremecimento. Abriu os olhos e ergueu um pouco a cabeça para olhar em volta. Continuava deitado no chão, ao lado de Lysa. Alguém se dera ao trabalho de o tapar com uma coberta pesada, a qual o aquecera durante as horas que haviam passado. Ainda se sentia cansado e de membros doridos, mas a mente pesava-lhe muito menos. Olhou para a amiga, deitada ao seu lado e estendeu a mão para lhe tocar a fronte. Pelo menos a febre parecia ter desaparecido por completo. O rosto descontraído levava-o a crer que o sono era pacífico, livre da maior parte das dores e pesadelos.

Baixou a mão e olhou para além de Lysa. Com passos silenciosos, Hendran movimentava-se entre os órfãos, mudando panos molhados, verificando o seu estado de saúde e se precisavam de outro tipo de atenção. Não havia sinal nem de Yudarh nem da Directora Drane. O rapaz observou as velas, tentando perceber pelo seu tamanho quanto tempo poderia ter passado – não passavam de pequenos cotos cujo pavio ameaçava apagar-se daí a não muito tempo.

Ergueu-se com cuidado e fez um leve aceno com a mão quando Hendran se apercebeu que ele acordara. Foi até à gaveta onde guardavam as velas e tirou duas, indo, com cuidado, substituir as que já tinham quase acabado. Pelo caminho, o seu estômago soltou um audível gorgolejo de fome. Há quantas horas não mordiscava um pedaço duro de pão?

– Há caldo na cozinha, ainda deve estar morno – murmurou Hendran, lançando-lhe um sorriso leve.

O pequeno não pensou duas vezes. Depois de tratar das velas, apressou-se até ao piso inferior. A cozinha estava silenciosamente vazia. A noite deveria ir já avançada para não haver por ali nenhuma criança. Foi até à panela ampla, ainda sob as achas mornas, serviu-se do caldo e devorou-o sem sair do lado da lareira. Serviu-se uma segunda vez, pescando um ou outro pedaço extra de carne cozida, e dessa vez foi sentar-se no banco corrido. Comeu mais devagar, saboreando o caldo enxabido e pensando em tudo o que acontecera nas últimas horas em que estivera acordado. Sorriu para si. Pelo menos conseguira ajudá-los de alguma forma.

Ao acabar o jantar tardio, lavou a sua tigela e voltou para o quarto, indo ajudar a jovem que vigiava os doentes.

*

Yudarh regressou ao amanhecer, quando Ayalal e a senhora Drane (que substituíra Hendran, para que a rapariga pudesse dormir), eram os únicos despertos. Como no dia anterior, o meio-demónio, sob o seu disfarce, voltou a observar os doentes e, desta vez, não só lançou dois feitiços a seis diferentes enfermos, como, no fim, voltou a observar os que já tratara antes. De dentro da capa que trazia sobre os ombros, retirou um graveto fino, não muito direito, e fez uma pergunta à directora. Esta indicou-lhe as enxergas daqueles que sofriam ou davam indícios de ter alguma hemorragia intestinal, e foi a esses que o tiefling se dirigiu.

À distância, Ayalal observava-o, atento. Tinha a certeza que aquilo só poderia ser uma varinha mágica – nunca vira de perto uma que fosse real. Yudarh baixou-se e tocou com o graveto no doente mais próximo. Os lábios moveram-se, formando uma rápida palavra de comando, e a ponta da varinha soltou um brilho branco. 

Junto do pequeno, Lysa remexeu-se sob a coberta e soltou um leve mas dorido gemido. A atenção dele focou-se de imediato na amiga. Ela piscou as pálpebras, e levou uma mão ao rosto, esfregando os olhos.

– Lysa…?

A jovem baixou a mão ao escutá-lo e rodou a cabeça para ele, fitando-o com uma expressão algo confusa. Os segundos em que ficou em silêncio pareceram demasiado longos para Ayalal. O rapaz conteve a respiração, temendo que outra crise de alucinações a tomasse.

– Ay... o que aconteceu?

Aliviado, Ayalal libertou o ar que havia retido nos pulmões. Levou uma mão pequena ao peito e sorriu-lhe com carinho.

– Estiveste muito doente. Mas agora já estás melhor, e vais ficar boa – disse. E, ao escutar-se, sentiu-se como um pequeno adulto.

Lysa suspirou, lançando uma mirada vaga ao tecto, e depois às restantes pessoas presentes no quarto. Focou o olhar em Yudarh, as sobrancelhas franzindo-se um pouco.

– Quem é? – murmurou, num tom algo vago. A sua mente estava ainda demasiado difusa para que a presença de um desconhecido a incomodasse realmente. Era quase como uma curiosidade.

Ayalal hesitou. Por um lado não se sentia no direito de denunciar o disfarce de Yudarh, por outro não achava justo que a amiga ficasse na ignorância.

Começara a debruçar-se, de forma a poder segredar-lhe ao ouvido, quando um estranho arrepio lhe percorreu o corpo. Endireitou-se de imediato e rodou a cabeça de um lado para o outro, procurando uma explicação para aquela sensação. Parecia tudo dentro do normal – os doentes descansavam nas suas enxergas, Yudarh estava junto de outra criança, enquanto a directora observava. No entanto, sentia os pelos dos braços eriçados sob as mangas da camisola. Passou uma mão pela nuca, erguendo os olhos para o tecto. Era uma sensação similar à que sentia quando as outras crianças o observavam discretamente, mas desta vez não havia ninguém a observá-lo. Engoliu em seco, quando uma ideia assustadora o assaltou. Seria a alma invisível de algum dos mortos que ficara presa ao quarto?

– Ay? O que se passa?

O rapaz baixou o olhar para Lysa, tentando disfarçar a sua repentina apreensão.

– Eu… depois explico – murmurou. Não conseguiu impedir-se de voltar a olhar em volta, agora mais discretamente.

*

Mosteiro das Sete Formas, 21 de Neth de 4592 AR (parte VI)


Ayalal ergueu o punho para bater à porta, porém, antes de chegar a tocar na madeira, Yudarh agarrou-lhe o braço e baixou-o com cuidado. Em vez da criança, foi o tiefling que bateu, com bastante mais força do que o pequeno seria capaz. Aguardaram por um bocado até a porta se abrir num movimento abrupto.

Desconcertado, o olhar da senhora Drane focou-se, por um momento, na figura desconhecida, antes de se aperceber da presença do órfão descalço. Os lábios formaram uma linha apertada, antes de falar.

– Agradeç…

– Encontrei esta criança a correr a cidade, meio desesperada, à procura de um curandeiro. Vim ajudar no que puder. – Yudarh interrompeu-a, num tom firme e grave.

A directora piscou os olhos, meio atordoada com a forma directa como o homem falara.

– O que… quem é o senhor? – quis saber, franzindo o sobrolho.

– Sou um viajante, com alguns poderes curativos. Mas se os meus serviços não forem realmente necessários… – Recuou um passo e chegou mesmo a dar meia volta.

Ay arregalou os olhos, o coração falhando um batimento.

– Não! – A directora esticou a mão, mas conseguiu impedir-se de o agarrar pela capa. Yudarh olhou por cima do ombro, erguendo uma sobrancelha. – Peço perdão. Agradecemos qualquer auxílio que nos possa prestar, senhor – hesitou, sendo óbvia a sua dúvida. – Mas o clérigo mais apto da cidade foi incapaz de nos ajudar. E não sei se temos como pagar-lhe…

O tiefling abanou a cabeça, afastando a menção de pagamento.

– Permita-me examinar os casos mais graves e farei o que puder.

Apesar da incerteza, a senhora Drane acabou por dar passagem a ambos, fechando a porta atrás de si. Vários pares de olhos espreitaram da cozinha, silenciosos. Yudarh lançou-lhes uma mirada vaga, enquanto seguia a directora.

– Porque nome o poderei tratar, senhor?

– Daryun – apresentou-se. – E este rapaz precisa de descansar. Está mais do que esgotado, senhora.

Drane suspirou, lançando um olhar a Ayalal.

– Esse rapaz já se esforçou demasiado nestes últimos dias – notou. – E parte da culpa disso é minha. Mas acredito que ele só conseguirá sossegar ao lado de uma das nossas jovens, quando ela estiver melhor.

O rapaz fez um aceno de confirmação. Já deixara a amiga sozinha demasiado tempo. E se tivesse piorado ainda mais? A súbita ansiedade fê-lo passar à frente de ambos e correr escadas acima.

– Ayalal!

A voz da directora perdeu-se atrás dele. A criança tropeçou no penúltimo degrau, levando as mãos ao chão para se apoiar e impedir-se de se estatelar, e continuou até à porta do quarto, onde estacou, o olhar precipitando-se para a enxerga de Lysa. A amiga estava deitada de lado, encolhida sobre si. Ofegava baixinho por entre os lábios semi-abertos. Ayalal ajoelhou-se ao lado dela, levando-lhe uma mão à fronte febril. O pano húmido que estaria a tentar aplacar-lhe a subida da temperatura havia deslizado para o chão.

Atrás dele, a senhora Drane e Yudarh entraram no quarto. A directora indicou ao homem as três enxergas onde jaziam os doentes mais graves, entre as quais estava a de Lysa, que era também a mais próxima. Ele abeirou-se, levou um joelho ao chão, ao lado de Ayalal, e pousou o bastão entre ambos.

– Eu trato dela – disse, num tom baixo, dirigindo-se mais à criança do que à directora. – Daqui a uns minutos já estará melhor. Mas precisará de descansar. Tal como tu. Se ela ficar preocupada com o teu bem-estar, piorará, por isso trata de dormir, Ayalal.

O rapaz não disse nada, mas o aceno lento confirmou que o ouvira. Retirou a mão da fronte de Lysa e afastou-se um pouco, dando-lhes espaço.

Yudarh procedeu a um pequeno exame, obrigando-a a deitar-se de ventre para cima. Ao sentir o movimento, as pálpebras de Lysa arrastaram-se morosamente e os olhos abriram-se. Fitou cada um deles, no entanto não houve qualquer reconhecimento no seu rosto, só aquele estranho medo, como se lhe pudessem fazer mal.

Após o exame, o tiefling sussurrou algumas palavras e as mãos recriaram um conjunto de movimentos fluídos que demoraram poucos segundos. A seguir pousou a mão esquerda sobre a fronte de Lysa e disse uma última palavra. Um brilho fraco emergiu de sob a palma, para desaparecer pouco depois. A jovem não tentou fugir. Na verdade, quando a luz se esvaiu, as suas pálpebras descaíram num movimento lento, e fecharam-se por completo.

Ayalal sobressaltou-se, os olhos arredondando-se de terror, enquanto os dedos se crispavam no tecido das calças.

– O que se… – começou a directora, também assustada.

– Está tudo bem. A doença foi removida e ela adormeceu devido à exaustão – informou Yudarh, após retirar a mão. – Mas a jovem continua fraca. Vou tentar restaurar um pouco da sua força, porém precisará de repouso absoluto. Todos eles. Se insistirem em levantarem-se, não o permita, directora, a não ser para fazerem somente as necessidades básicas. Por hoje conseguirei tratar de seis dos casos, no máximo.

A senhora Drane respondeu um “sim, senhor” murmurado, enquanto o via iniciar um novo feitiço, este um pouco mais demorado que o primeiro.

Quando deu por terminado o caso de Lysa, dirigiu-se à próxima enxerga, repetindo o procedimento. Ayalal pouca atenção lhe prestou, voltando a aproximar-se da amiga para a observar de perto. O rosto descontraíra-se para uma expressão esgotada mas pacífica e o corpo deixara de tremer daquela forma descontrola. Um vacilante sorriso de alívio despontou nos lábios da criança, e duas lágrimas escaparam-se-lhe pelos cantos dos olhos. Apressou-se a limpá-las à manga da camisola, não fosse Lysa acordar de repente e as visse.

Minutos depois, Yudarh ergueu-se de junto do último caso ao qual podia prestar ajuda naquele dia, para observar as restantes crianças, ao mesmo tempo que dava algumas recomendações à directora. Por fim, fitou o local onde estava Ayalal. O pequeno jazia deitado e meio encolhido, ao lado de Lysa, e ambos dormiam. O meio-demónio sorriu para si.

*

Mosteiro das Sete Formas, 21 de Neth de 4592 AR (parte V)


Antes de iniciarem a caminhada, Yudarh deixou a criança acalmar-se, aproveitando para lhe examinar as escoriações causadas pela criatura.

– O que era aquilo? – murmurou Ay, não conseguindo deixar de olhar para o corpo caído.

O tiefling não lhe respondeu logo. Tocou-lhe no queixo arranhado e murmurou um feitiço. O rapaz sentiu uma ligeira comichão no ferimento para, de seguida, o ardor começar a desvanecer-se. Permaneceu somente uma sensação de dormência. O mesmo aconteceu com os restantes arranhões e nódoas negras.

– Aquilo – começou, endireitando-se devagar. A sua expressão contorceu-se num esgar de desgosto e simultânea repulsa. – É uma aberração criada pelos drow. Chamam-lhe irnakurse, que na nossa língua significa “perfeitos”. Do que já investiguei e observei, acredito que antes pudesse ter sido um elfo que sofreu todo um processo de tortura insana num dos seus laboratórios, que o transformou naquilo: uma abominação repleta de raiva, de mente e espírito quebrados. Uma pobre alma que sofreu mais do que alguma vez deveria ser permitido.

Drow… Ayalal não sabia exactamente o que eram mas, pela forma como a mão de Yudarh se crispara no bastão ao explicar-lhe a origem do monstro, eram seres muito maus. Olhou a criatura que o tentara devorar, agora com uma palpitação de pena no peito. Quem teria sido no passado? Onde estaria a sua família?

– Esses Drow vivem aqui? – murmurou, preocupado.

– Não “aqui”. Vivem num local muito mais profundo, as Terras Negras, que têm ligação com algumas destas grutas. Foi daí que o irnakurse veio, em busca de comida, imagino.

Enquanto Ayalal estava distraído com a nova informação, o meio-demónio moveu uma mão num gesto ligeiro e recitou meia dúzia de palavras. As nódoas de sangue e uma grande parte da sujidade que manchava a pele e roupa da criança desapareceram.

Não se demoraram muito mais. No regresso, Ay pôs de lado o assunto do irnakurse e contou-lhe o que sabia sobre o que se passava no orfanato: o número de doentes, os sintomas, as mortes, a incapacidade do clérigo de as curar, o rato que as outras crianças tinham encontrado. Yudarh movia-se com a segurança de quem era familiar com o local, simultaneamente atento ao que o rapaz dizia e ao que os rodeava.

Por fim, a luz fraca das tochas anunciou-se à distância, conferindo ao negrume um fraco tom alaranjado que era mais animador do que Ayalal imaginara. Tentou andar mais depressa. Quando estava em plena escuridão, a sua visão fazia com que tudo ficasse numa mistura perturbadora de preto e branco.

Ao irromperem para o centro da encruzilhada, a criança inspirou fundo. Teve vontade de se sentar no chão, mesmo ali, e não se mexer durante um bom bocado. As pernas ameaçavam não o suster de pé, e ele não estava certo de quanto mais aguentariam.

– Ayalal.

A criança ergueu o olhar encovado para Yudarh, e os olhos piscaram, focando mais do que a vista. A súbita segurança que a presença de Yudarh conferia fizera com que a sua mente perdesse o estado de alarme e começasse a avançar para uma letargia de exaustão.

– Sim, Mestre?

– Fora deste túnel vou ser um viajante que encontraste enquanto procuravas ajuda na cidade – disse o tiefling, muito sério. – Não sabes o que sou, donde venho, nem sequer o meu nome.

Ay franziu um pouco as sobrancelhas. A ideia de que o Mestre Yudarh os ajudaria numa espécie de anonimato incomodava-o. Ele merecia que o reconhecessem como alguém que fazia o bem, não como um ser demoníaco que muitos pensavam que era.

– É o melhor. Não queremos alimentar a imaginação fértil e muitas vezes rebuscada do povo – notou o adulto.

– Mas ainda tem… – A criança apontou para os chifres, algo hesitante. – Como…?

Um pequeno sorriso ergueu um dos cantos dos lábios de Yudarh. Num gesto rápido levou a palma da mão livre ao peito e fez os dedos terminados em garras deslizarem até à base do pescoço. Sussurrou quatro palavras e, de seguida, afastou a mão. Por um fugaz instante, foi possível antever-se um emaranhado de energia que o corpo assimilou de imediato. De forma gradual, o tom avermelhado da pele de Yudarh foi absorvido por um castanho claro; os olhos outrora vermelhos, ganharam um tom também ele castanho mas mais claro, quase como dourado; chifres, garras, cauda e cascos desapareceram como se nunca tivessem existido; o cabelo passou de branco a puro negro; as feições suavizaram-se, tornando-o mais jovem; e o bastão perdeu as runas e revestiu-se de nós rústicos próprios de um ramo de árvore.

A criança piscou os olhos, com um ar aparvalhado. Era como se Yudarh estivesse lá e, ao mesmo tempo, não estivesse. A imagem parecia tremelicar, permitindo-lhe ver as duas imagens intercaladas.

– É um feitiço de disfarce – explicou o meio-demónio. – Uma mera ilusão. É possível que não a vejas muito bem, porque sabes quem eu sou. Em todo o caso, não dura muito mais do que duas horas, por isso sejamos rápidos.

Não tardaram a sair do túnel para a cidade, Ayalal seguindo um pouco atrás de Yudarh. Pouco depois estavam diante das portas duplas do orfanato que se erguiam austeras na sua madeira escura. Avançaram para os degraus.

*

Mosteiro das Sete Formas, 21 de Neth de 4592 AR (parte IV)


O tentáculo em redor do tornozelo de Ayalal não afrouxara o aperto, pelo contrário. As palavras fizeram-no estreitar-se ao ponto de parecer querer enterrar-se na carne. O rapaz soltou um gemido de dor e, agora que a criatura estava distraída, dobrou-se sobre si, tentando com os dedos abrir o tentáculo para se libertar. Porém, a sua força estava muito longe de se comparar à do monstro.

Quando Yudarh fez um pequeno movimento para diante, a boca da criatura escancarou-se. Um grito alienígena, repleto da mais pura raiva e horror, precipitou-se sobre eles e tentou perfurar-lhes não só os ouvidos, como a alma. Ay encolheu-se por instinto, como se o ser tivesse acabado de saltar na sua direcção. Porém nada aconteceu. O grito continuou a ecoar pela gruta, perdendo-se na escuridão.

No processo, três outros tentáculos lançaram-se na direcção do tiefling. Ele baixou-se e desviou-se para o lado, evitando dois deles, porém o terceiro atingiu-o numa coxa. Yudarh vacilou, mas não caiu. Lançou um olhar à criatura.

– Os teus poderes não me afectam a mente – disse, pousando os cascos em terra firme.

Como aviso, a extremidade superior do bastão soltou uma faísca. No instante a seguir, um novo relâmpago de energia eléctrica precipitou-se na direcção da criatura. Ela não teve como fugir. O corpo foi abalado por vários estremecimentos e o grito de horror com que os tentara afectar vacilou para algo gorgolejado.

Com isso, o tentáculo que agarrava Ayalal abriu-se e escorregou da sua perna, num movimento serpenteante. A criança tornara-se um alvo secundário.

Os quatro membros lançaram-se sobre Yudarh em simultâneo. Um deles falhou redondamente o alvo, outro pareceu acertar, e no entanto o tiefling não pareceu de todo afectado com o choque. Dos outros ele desviou-se com movimentos atentos. Uma rosnadela frustrada soltou-se da boca da criatura, diante do completo falhanço da sua ofensiva. Yudarh não esperou um segundo para contra-atacar.

Ay encostou-se à rocha o melhor que podia, tentando manter-se tão longe quanto possível da batalha, enquanto observava. O meio-demónio não demonstrava qualquer tipo de descontrolo. Cada ataque parecia premeditado, a atenção focada no que a criatura poderia fazer a seguir. Desse modo, conseguiu evitar todos os ataques que lhe eram dirigidos. A criatura não teve a mesma sorte. Quando realmente percebeu que não teria hipótese de vitória, tentou rastejar e fugir, porém poucos foram os metros percorridos, quando um novo relâmpago a atingiu, siderando-a.

Muito quieto, Ayalal ficou a olhar para o corpo disforme, caído no chão. Fumegava, e o cheiro a carne queimada toldava o ar. Ainda temeu que pudesse voltar a erguer-se, mas nem um membro deslocado estremeceu. Yudarh aproximou-se da criatura, levando um joelho ao chão para a observar de perto. Tocou-lhe com cuidado, voltando-a para si. Ay viu-o a abanar a cabeça e os ombros descaíram um pouco. Sussurrou algumas palavras numa língua desconhecida que, estranhamente, pareciam conter em si um lamento pesaroso.

Por fim, o tiefling ergueu-se e voltou-se para o rapaz. Por um momento Ayalal julgou que também ele seria alvo de um daqueles ataques fulminantes, e encolheu-se por instinto. O olhar de Yudarh coriscava de fúria.

– Devia tê-lo deixado comer-te, criança idiota! – rosnou.

– Eu não quis… eu não sabia… eu precisava… desculpe, mestre Yudarh. – A cabeça da criança descaiu, ainda assim o olhar saltava assustado para a criatura. – Precisava de o encontrar de qualquer forma.

– Não desta forma. Podias estar morto, Ayalal. Não fui eu que te salvei, foi algum deus que teve pena de ti – atirou-lhe as palavras, como se fossem estalos. – Por acaso, e só por acaso, estava aqui perto! E se não estivesse?! Estas grutas são gigantescas, profundas e extremamente perigosas. Aquilo é só uma amostra.

Com a mão livre, apontou o cadáver no chão.

O lábio inferior do rapaz estremeceu e ele engoliu em seco, prendendo o soluço que se queria soltar. A voz vacilou, tornando-se um murmúrio.

– Mestre, a Lysa está a morrer… estão todos a morrer. – Não teve coragem para o encarar. – Ninguém os consegue curar. Eu precisava de o encontrar.

Yudarh não lhe respondeu logo. Ay sentiu o seu escrutínio rápido e pareceu-lhe ouvir o que seria um muito leve e disfarçado suspiro. O som de cascos a bater na pedra avizinharam-se de si. O pequeno fechou os olhos e encolheu-se mais. No entanto, acabou por sentir uma mão pousar-se ao de leve sobre o cabelo.

– Contas-me tudo no caminho de regresso.

O corpo da criança relaxou sob o toque familiar e, inevitavelmente, um novo soluço inundou-lhe o rosto de lágrimas.

*

Mosteiro das Sete Formas, 21 de Neth de 4592 AR (parte III)


Quando Ayalal piscou os olhos, a trágica imagem da morte de Lysa recuou do primeiro plano da sua mente, para ficar a rondar-lhe a memória, ameaçando atacá-lo a qualquer instante. A gruta voltara a estar diante de si, no entanto a posição do rapaz havia-se alterado em relação à do local: já não estava de pé. O peito e o maxilar inferior doíam-lhe da queda que dera, e o queixo ardia-lhe onde a pedra o esfolara. Apesar disso, a dor era o menos. Devagar, o seu corpo era arrastado para trás, por um pé. Puxou-o, ao mesmo tempo que levantava a cabeça para espreitar por cima do ombro.

O que parecia ser um tentáculo enrolara-se num dos seus tornozelos. Viu a ponta contorcer-se, sentiu a pressão que fazia, face ao seu puxão. O coração começou a bater mais depressa, enquanto o olhar seguia o tentáculo pela escuridão, até uma das enormes colunas de pedra. A criança semicerrou os olhos, perscrutando com mais atenção. A coluna moveu-se e dobrou-se um pouco, revelando não estar presa ao tecto.

Há medida que Ay se aproximava, apercebeu-se da armadilha em que caíra. O que pensara serem espigões escavados na pedra eram, na verdade, dedos e ossos que brotavam de forma aleatória de várias zonas da criatura. Os membros, antes disfarçados pelas sombras, retorceram-se, formando ângulos impossíveis, como se alguém os tivesse partido e recolocado sem ter a mínima noção da forma que deveriam ter, nem da zona onde se inseriam. Fitando-o, dois olhos esféricos piscaram, dessincronizados – um encontrava-se na zona superior do corpo, outro quase ao nível do solo. No espaço que separava os orbes, a superfície contorceu-se e abriu-se numa boca de fundo negro, cada mandíbula ameaçando-o com uma série irregular de dentes afiados.

Um grito de pânico encheu-lhe a garganta, perante tamanha monstruosidade, e Ayalal tentou puxar a perna num movimento frenético. No entanto, ou a força lhe havia fugido, ou a constrição era demasiado forte. Tentou agarrar-se ao chão, mas foi em vão. Os dedos derraparam, as unhas raspando nas irregularidades da pedra. Uma delas soltou-se e Ay agarrou-a por instinto. Rodou sobre si num movimento rápido, impulsionado pelo pavor, e atirou a pedra à criatura. Acertou-lhe, porém o monstro nem sequer reagiu, deixando o projéctil cair e ressaltar duas vezes no chão. Um arquejar gutural libertou-se da boca dele, e este dobrou-se mais, em direcção aos pés do rapaz. Ayalal sentiu um bafo grotesco a carne podre, e um fio de saliva pendeu da língua que se estendia na sua direcção.

Porém, a criatura deteve-se. O olho superior piscou duas vezes, fitando alguma coisa acima da cabeça de Ayalal. De súbito, um traço de luz esbranquiçada cortou o espaço ao lado da criança, erguendo-lhe os cabelos com a energia pura que continha. A criatura deixou escapar um grito estrangulado, talvez de surpresa, e ainda se contorceu numa tentativa de escapar ao impacto, arrastando Ayalal com brusquidão para o lado contrário ao da luz, embatendo com ele na parede. O rapaz semicerrou os olhos e piscou as pálpebras, algo atordoado não só pelo choque, como também pela explosão de luz, seguida de uma torrente de faíscas a saltar em todas as direcções quando a descarga embateu no corpo do monstro. Um forte cheiro a queimado tomou o ar em redor.

Adarghins i zadiran.

Ayalal reconheceu de imediato o tom duro e álgido da voz. Embora não compreendesse o que fora dito, as palavras soaram-lhe a uma ordem que não admitiria desobediência. Olhou para o caminho que pensara seguir antes mesmo de ser capturado, e arregalou os olhos. Yudarh pairava a cerca de dois ou três palmos do chão, para lá do piso plano, por cima da zona que descia a pique. Numa das mãos empunhava o bastão, apontando-o à criatura. A sua expressão, de olhar cortante e cantos dos lábios descaídos, prometia tudo menos compaixão.

*

Mosteiro das Sete Formas, 21 de Neth de 4592 AR (parte II)


Ofegante e trémulo, parou somente diante da porta fechada. Bateu com a pouca força que lhe restava, mal escutando o som a repercutir-se na madeira.

– Mestre… – sussurrou, dolorosamente consciente de que ninguém o ouviria. Encostou-se à porta e deixou que a exaustão suavizasse. Voltou a bater, ainda assim o punho fraquejava. – Mestre Yudarh!

A única resposta que obteve foi o eco da sua voz nas paredes escurecidas do túnel. Esperou e, sem ter a certeza do tempo que passara, chamou-o novamente e voltou a bater à porta. Mas foi um esforço vão. Se estava em casa, o tiefling não o receberia.

Olhou para as sombras que o haviam seguido até à soleira da porta de Yudarh. Nunca vira o mestre na cidade e, pelo que Lysa dizia, ele preferia a reclusão que lhe reservava a solidão. Não estando em casa, e sendo improvável que houvesse descido à cidade, só via duas hipóteses possíveis.

Caminhou até ao cruzamento, apoiando uma mão na parede. No peito o coração ainda batia descompassado. Lançou um olhar ao trilho que percorrera meses atrás, até ao exterior, onde, pela primeira vez, pudera cumprimentar o céu e o Sol. Depois, fitou o lado oposto. Conseguia perceber como o túnel se perdia na mais pura escuridão, alguns metros mais à frente. Já vira Yudarh desaparecer por aquele trilho e acreditava no que as histórias contavam sobre os monstros que viviam nas sombras das entranhas das montanhas.

Dessa vez, não precisou de coragem para avançar: foi o medo que o empurrou em frente. Entrou na escuridão, seguindo com menos cuidado do que sabia que deveria. Apesar de ser capaz de ver no escuro, a falta de qualquer tipo de luz intimidava e ameaçava-o. Se as histórias fossem verdadeiras, haveria criaturas à escuta, monstros que esperavam por qualquer ser vivo que pudessem devorar.

O caminho começou a descer e as paredes estreitaram-se. O ar que pairava em seu redor tornou-se ligeiramente mais húmido e pesado. Ao fim de alguns minutos, Ay chegou a uma bifurcação: um dos lados seguia no mesmo sentido descendente que levara até ao momento; o outro não passava de pouco mais que uma ampla falha na rocha, através da qual um homem adulto conseguiria passar com cuidado. Parou, ponderando nas poucas hipóteses que tinha. Yudarh poderia estar em qualquer lado, e ele não fazia ideia da extensão daqueles caminhos. A probabilidade de se perder era enorme. Mas se não encontrasse o meio-demónio a tempo…

Encheu os pulmões de ar e esperou um segundo, antes de os esvaziar num súbito grito.

– Yudaaaaarh!

O grito ecoou nas paredes vazias, sendo pouco depois engolido pelo silêncio. Era uma péssima ideia, Ayalal tinha plena noção disso. Se o mestre o ouvisse, estivesse onde estivesse, outro tipo de coisa certamente o faria. Voltou a chamá-lo uma vez e depois olhou para os dois caminhos que tinha à escolha. Nenhum lhe parecia melhor do que o outro, por isso acabou por escolher a fenda, pela qual se infiltrou. Perscrutou cada metro em diante, enquanto tentava ouvir mais do que os seus passos e a própria respiração.

Caminhou talvez durante meia hora – não tinha completa noção do tempo que passara. Para além do seu campo de visão, onde tudo anteriormente fora breu, surgiu uma leve luminosidade. Ayalal franziu as sobrancelhas e parou, com uma mão apoiada na parede. Aguardou que a claridade revelasse ser mais do que uma luz ao fundo do túnel, porém ela não se moveu. A criança avançou com mais cautela, os passos tornando-se tão silenciosos quanto conseguia. Quando estava mais perto, apercebeu-se que a falha de alguma forma se abria para o compartimento donde vinha a luz e que esta parecia produzida pela própria rocha, que em algumas zonas se tornava azulada. Espreitou para ver melhor. A falha abria-se para um compartimento amplo de tecto alto. Uma dúzia de estalactites estendiam-se dele, tentando alcançar as estalagmites que cresciam sob elas. Um ou outra poça de água compunha o local. Para além disso, estava, aparentemente, vazio.

Saiu do interior da falha, sem conseguir disfarçar uma certa curiosidade por aquele estranho brilho. Evitou pisar as poças, porém não foi difícil as meias ficarem molhadas da humidade fria da pedra. Parrou por um momento, debruçando-se sobre um dos brilhos e percebendo que não era realmente a pedra que brilhava, e sim algo que estava colada a ela. Já vira coisas daquelas nas paredes da cidade, só não eram brilhantes. Pensou por um segundo, antes de acenar para si mesmo, ao lembrar-se do nome. Era um líquen, e aquele deveria ser mágico. O melhor era não tocar-lhe, ponderou.

Endireitou-se e voltou a olhar em volta. Mais à frente, a galeria começava a afunilar-se, formando uma nova passagem onde a luz morria. Atrás de si… franziu as sobrancelhas e regressou até junto da fenda na parede. Tocou com a mão pequena numa zona da pedra à altura da sua cabeça. Havia sulcos na rocha, sobrepondo-se em vários ângulos. Eram demasiado definidos para se confundirem com marcas naturais da pedra. Engoliu em seco. Lembravam demasiado estrias deixadas por garras de algo suficientemente forte para rasgar aquela dureza. Não vira nada daquilo durante a caminhada pela falha, por isso pertenceriam provavelmente a algo que tentara sair, mas não conseguira. Um dos monstros que vivia ali.

Contemplou o que o poderia esperar do outro lado. Uma centena de dentes famintos e garras que lhe rasgariam o corpo. Cerrou os punhos. Não podia acobardar-se. Se alguma coisa o tentasse atacar, ele limitar-se-ia a correr tão depressa quanto conseguisse para lhe fugir.

Resoluto, avançou para o outro extremo da galeria, contornando algumas das estalagmites. Atrás de si, deixou o gotejar esporádico da água que se infiltrava na montanha e, após uma inspiração, reentrou na escuridão. O túnel alargava-se consideravelmente daquele lado. Colunas espessas e meio disformes formavam apoios casuais entre o tecto e o solo. Ay atentou as paredes e o próprio chão, no entanto não viu sinal de outras marcas que pudessem denunciar um habitante obscuro.

O trilho encurvou, e a criança parou de repente à beira de uma descida a pique. Não lhe via o fundo. Hesitou, apoiando uma mão na parede. E se não conseguisse voltar a subir?

Por entre a indecisão, foi incapaz de perceber que alguma coisa se aproximara de si pelas costas. Só sentiu de súbito um dos pés a fugir-lhe do chão. Mas, nesse mesmo instante, mal tomou noção da dor da queda que deu para a frente, ou sequer do tentáculo que lhe prendia o tornozelo e o arrastava para trás. Na verdade, já não se encontrava de todo numa gruta escura, mas sim de regresso ao orfanato. Diante de si, Lysa jazia exangue, morta pela doença que a minara, e ele chorava como nunca antes havia chorado, enquanto uma dor terrível lhe rasgava o peito.

***

Mosteiro das Sete Formas, 21 de Neth de 4592 AR (parte I)


Hendran insistira que Ay se deitasse e tentasse descansar. Ele limitara-se a lançar-lhe um olhar mortiço e abanar a cabeça numa negação. Sob as pálpebras, dois poços escuros falavam melhor do que qualquer palavra a respeito do cansaço da criança. Na verdade, o contraste com a pele pálida fazia-lo parecer mais doente do que alguns dos que padeciam da maleita.

Lysa passara a noite num sono inconstante repleto de murmúrios e esgares de angústia. Com o mimetizar exterior do nascer do dia, a luminosidade do quarto começara a crescer, assim como a sua inquietação. Ay cabeceava para a frente, lutando consigo próprio para não adormecer, quando a voz da amiga o despertou qual estalo no rosto.

– Larguem-me! – Lysa gritara e abrira os olhos, cuja atenção caiu sobre o rapaz ao seu lado. O medo inundou-lhe o rosto num reconhecimento que não era o suposto: via alguém que não era Ayalal. – Deixa-me, por favor! Isso magoa… por favor, por favor!

Soltou um soluço e tentou rastejar para longe dele. Por um segundo, Ay paralisou, chocado com tal reacção, e os músculos fraquejaram quando os tentou mover, doridos por tudo o que haviam passado nos últimos dias. No entanto, logo a seguir agarrou-a para a manter na enxerga.

Em resposta à prisão, as pálpebras de Lysa escancararam-se em puro terror. Ergueu uma mão trémula e pressionou-lha contra o rosto, tentando afastá-lo de si. Faltava-lhe porém a força.

– Lysa, sou eu – murmurou Ay, fechando um olho sobre o qual caíra um dedo magro. – Ninguém te vai fazer mal…

– Não, por favor! – implorava, as lágrimas começando a escorrer-lhe pelo rosto que se contorcia num choro sufocado. – Eu não fiz nada... larga-me, pai, larga-me! Não, não… Mãe, ajuda-me!

O rapaz fez o que pôde para a manter deitada, refreando-lhe as tentativas de o afastar, mas era difícil. O pânico dera-lhe uma falsa força e, apesar de Lysa não ser alta, ainda assim era maior do que ele, o que tornava mais difícil tentar contê-la. Acabou por, de alguma forma a largar e obrigá-la a sentar, só para a poder abraçar, fazendo por prender-lhe os braços contra o peito. Ela gritou de desespero, tentando escapar-se.

– Não vou deixar que te magoem – disse-lhe baixo, junto do ouvido, esperando que houvesse discernimento suficiente para o compreender. Pensou cada uma das palavras. – Estás segura aqui, nós protegemos-te. Somos teus amigos, a tua família. Ele não te fará mal, nunca mais.

Demorou até a jovem sossegar contra ele, levada por um choro que, devagar, se amenizou. Baixinho, Ay cantou-lhe uma música de embalar, a mesma que Lysa lhe cantava algumas vezes para o ajudar a dormir, esperando que isso fosse uma ajuda a sossegá-la. Quando achou que podia aliviar o aperto, o pequeno libertou um braço e afagou-lhe o cabelo num toque carinhoso mas algo trémulo, receando despoletar um novo ataque de alucinações. Por fim, também o choro terminou, deixando-a num sono exausto, aconchegada nos seus braços mais pequenos. Com ajuda de Hendran, voltaram a deitá-la na enxerga.

De mente esgotada por tudo o que se passara, Ayalal saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Lá fora, caminhou lentamente pelo corredor sombrio, os punhos cerrados com tanta força que as extremidades das unhas o magoavam. De súbito, parou e esmurrou a parede ao seu lado. A dor do impacto entranhou-se-lhe pelos ossos, porém foi um alívio breve ao que sentia. Inspirou fundo e engoliu em seco. Não percebia como é que não havia ninguém que os pudesse ajudar. O clérigo falhara de todas as vezes; no dia anterior ouvira Drane a contar a Hendran que os curandeiros, sabendo disso, se haviam recusado a ver as crianças, e que tinham sugerido que fossem levadas para fora da cidade, para não contaminarem os restantes cidadãos. Estavam a condená-los, não se atreviam sequer a tentar! Rosnou por entre os dentes, sentindo raiva dessas diabólicas pessoas, raiva do pobre rato que deveria ter causado aquela epidemia, raiva dos deuses a quem teciam preces, mas que na verdade eram incapazes de ajudar um bando de crianças…

Voltou a esmurrar a parede e a dor fez com que os pensamentos parassem por instantes, para a seguir ficarem a pairar na consciência. Havia neles algo de importante, sentiu, alguma coisa que lhe estava a escapar. Concentrou-se, resistindo à raiva que queria tomar posse dele. Quando se apercebeu do que era, os olhos arredondaram-se. Sentiu-se estúpido por não se ter lembrado antes.

Um instante depois, galgou pelos degraus abaixo e precipitou-se para a porta, saindo a correr para o frio da cidade, sem sequer se calçar. Atrás de si, a porta ficou aberta.

***

Mosteiro das Sete Formas, 20 de Neth de 4592 AR (parte III)


A noite acabara de cair na cidade subterrânea, quando Hendran se apercebera que a expressão de Pather se descontraíra… e que o rapaz deixara de respirar. Tentaram reanimá-lo, porém fora um esforço infrutífero. Apesar de não ter qualquer vontade de se aproximar do corpo, Ayalal viu-se obrigado a ajudar a deslocá-lo até ao andar térreo, pousando-o junto ao altar da Avó Corvo e cobrindo-o com um lençol. O olhar divino velar-lhe-ia a alma pela noite adentro. Ay ficou quieto e em silêncio, enquanto a directora e Hendran rezavam uma prece murmurada a Andoletta. Não era capaz de olhar para o incaracterístico volume deitado no chão frio sem que uma onda de terror o submergisse. Era como se nada conseguisse deter a doença, como se cada um dos enfermos tivesse a sentença ditada.

Horas depois, quase como confirmação desse pensamento, um segundo corpo juntou-se a Pather. Após uma convulsão que lhe arqueara as costas de forma quase sobrenatural, a vida abandonara o corpo da rapariga que tivera o ataque de espasmos durante a manhã. Ver uma mulher quase adulta a perecer arruinava qualquer esperança que pudessem ter. Tentaram retirar o corpo sem acordar os que já dormiam ou estavam tão doentes que a consciência pairava entre uma realidade nublada e o delírio da febre.

Ainda não tinham atingido a madrugada do dia seguinte e já o quadro geral os devastava: os doentes que estavam mal haviam piorado para o estado que antecipara a tragédia. A febre subira e não parecia haver forma de querer baixar, as dores faziam-nos gemer numa sinfonia de horror, e os murmúrios desconexos abalavam quem os escutava.

Foi impossível para Ayalal conseguir dormir. Um nó de aflição esmagava-lhe o peito, tornando quase difícil respirar. Por isso, sob a luz trémula de uma vela, manteve-se sentado junto da amiga, refrescando-lhe o rosto com um trapo molhado, enquanto as horas rastejavam pela noite.

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Mosteiro das Sete Formas, 20 de Neth de 4592 AR (parte II)


Quando entrou na cozinha, Ayalal deparou-se com um dos rapazes a empunhar firmemente o atiçador da lareira, e uma rapariga a segurar na vassoura, um passo atrás dele, enquanto observavam de olhos semicerrados um armário alto que se erguia encostado a um canto.

– Foi lá para baixo, eu vi! – disse outro dos órfãos, ajoelhando-se e quase encostando o rosto ao chão para espreitar. – Está lá, sim. Tenta tirá-lo com a vassoura.

– E se a coisa salta para cima de mim?! – perguntou a rapariga, chocada. – Eu dou-lhe com a vassoura se ele tentar sair…

Ayalal ponderou seriamente em deixá-los entretidos com fosse qual fosse o bicho que haviam encontrado. No entanto a sua consciência não o deixaria em paz se não soubesse o que poderia ser, principalmente havendo um quarto cheio de doentes por cima da cabeça de todos eles.

– O que se passa? – perguntou, após o segundo que usara para ganhar coragem.

Seis cabeças rodaram e olharam-no por cima dos ombros.

– É um rato gigante – disse a rapariga, muito depressa. – Estava escondido na despensa e, quando fui lá, fugiu.

Ayalal não acreditava que o animal fosse assim tão grande. Mas, segundo ouvira dizer, os ratos podiam causar muitas doenças, e se esse estivera escondido no sítio onde guardavam a maior parte dos alimentos, havia a possibilidade de ser ele o culpado para o que se passava nos últimos dias.

– Dá cá isso. – Um dos outros rapazes arrancou a vassoura da mão da pequena e baixou-se junto ao armário, enfiando a extremidade inferior por baixo do móvel e empurrando com força.

Escutou-se um guincho fino e, num movimento rápido, o animal surgiu, correndo desenfreadamente para tentar escapar. O atiçador da lareira caiu na direcção dele, porém falhou o alvo, batendo antes na pedra fria e ressoando na cozinha.

O rato tinha o comprimento de uma mão adulta aberta e uma magreza doentia – um olhar mais atento detectaria com facilidade várias peladas que revelavam a pele ulcerosa que o cobria. Por um instante, ele olhou na direcção da porta, onde estava Ay, e depois na da janela fechada, medindo as hipóteses de fuga. Enveredou pela primeira opção.

O rapaz ficou parado, vendo-o correr para si. Uma parte da mente dizia-lhe que o correcto era matá-lo, outra sentia pena dele. Não passava de um animal inocente que, como todos eles, só deveria querer um local seguro para viver.

Porém, antes sequer de o animal o conseguir alcançar, uma vassourada caiu sobre ele, atordoando-o. Seguiu-se-lhe o atiçador, que lhe arrancou outro guincho, uma e outra vez. Por instantes, Ayalal desviou o olhar fechou os olhos, contendo um esgar. Nada merecia uma morte assim.

Quando o animal jazia sem vida, sobre a pedra fria, aproximaram-se todos, espreitando-o.

– E agora? – quis saber um dos órfãos que, até ao momento, fizera por se manter afastado.

– Tem ar de estar cheio de doenças – notou Ay, baixinho. – Pode ter sido ele que fez toda a gente ficar doente. É melhor… queimá-lo?

Para sua surpresa, ninguém discutiu a sugestão. O rapaz que segurava no atiçador (agora com um certo orgulho pelo feito), ao fim de três tentativas, ergueu o rato e equilibrou-o na ponta, até chegar à lareira, para dentro da qual o atirou. Ficaram a vê-lo arder, como um estranho e macabro espetáculo de fogo.

***