Mosteiro das Sete Formas, 28 de Calistril de 4593 AR (parte III)


– Directora, se não se importar, gostaria de ficar nesta sala mais alguns minutos para poder executar um feitiço – pediu Yudarh, fitando Drane. – Sem que nenhuma criança me interrompa. Não é nada de perigoso, preciso só de concentração.

A mulher hesitou, mais por estranheza do que algum tipo de medo, mas acabou por consentir.

– O tempo de que necessitar – garantiu. – Eu esperarei no exterior. Será mais fácil para pôr algum entrave.

Quando a senhora Drane saiu, Yudarh sentou-se no chão de madeira escura, pousou o bastão e cruzou as pernas. Retirou no interior das vestes o amuleto em forma de espada, de guarda raiada como se de um sol se tratasse. Concentrou-se no pendente e procedeu aos gestos que o feitiço divino requeria, invocando as palavras que continham parte da magia ritualística.

Os seus olhos tornaram-se cegos, os ouvidos surdos. Um fluxo aleatório de cenas e conversas decorridas na cidade preencheu-lhe a mente. Concentrou-se mais e, entre o emaranhado labiríntico de informação captou uma única linha que lhe interessava. Segurou-a com firmeza e seguiu por ela, perscrutando os nós a que levava, até atingir o seu fim. Encontrou o que queria.

A visão desembaciou-se e uma expressão determinada tomou-lhe o rosto duro. Com a ajuda do seu bastão, Yudarh levantou-se do chão. Lançou um olhar a Ayalal. Continuava na mesma posição, parecendo não dar atenção a nada. Noutra ocasião, a criança tê-lo-ia observado avidamente, sequiosa por aprender cada gesto do feitiço.

O tiefling abandonou o orfanato com passadas decididas. Como se fosse em direcção ao seu tugúrio, dirigiu-se para a zona menos populosa da cidade, onde as casas desabitadas e em mau estado subsistiam num pequeno reino. Era também por ali que poderia encontrar os casuais mendigos, os mais desfavorecidos, e os que tentavam manter-se à margem das leis da cidade.

Infiltrou-se pelas ruas estreitas dominadas por uma penumbra que dissuadiria muitos de palmilharem aqueles caminhos. Ali a iluminação era escassa, não havia o mimetismo de luz que diferia o dia da noite. Fora da estrada principal que levava aos túneis, a noite era eterna.

Passou junto a um grupo de homens que se reunia à entrada de uma ruela. Yudarh examinou-os com um olhar rápido. Para além da candeia pequena que os iluminava, viu duas adagas desembainhadas e rostos enegrecidos de ameaças. Nenhum deles era o seu alvo. Ao seguir em diante foi perseguido por olhares desconfiados, porém o meio-demónio relegou-os para segundo plano. Não fora ali para tratar de pequenos crimes. Os guardas da cidade tinham o dever de tratar desses. E, na verdade, tinham também o dever de tratar daqueles por quem ele procurava. No entanto, a simples ideia de que o trio de bandidos poderia escapar às mãos da justiça, inflamava-lhe a dor que sentia face aos seus crimes. Não o queria admitir perante a sua deusa, mas tomara o acontecimento como um dever pessoal.

Parou junto a uma tocha que iluminava a porta escura de uma taberna. Mais acima, o local onde outrora existira uma placa pendurada desaparecera, mas Yudarh lembrava-se do nome do estabelecimento – A Donzela Enforcada. Entrara ali somente uma vez, há muitos anos, em busca de informações. Hoje já tinha as informações de que necessitava.

Empurrou a porta e entrou para um ambiente semi-obscurecido por fumos provenientes de ervas a serem fumadas, da lareira acesa, e das candeias penduradas no tecto. Não era um local amplo e as mesas empilhavam-se quase umas em cima das outras, dando pouco espaço para se passar entre elas. Algumas conversas eram sussurradas, outras faladas alto. Ouviu o som de moedas a baterem nas mesas e dados a rolarem, e viu cartas a serem lançadas nos tampos, de face voltada para cima. Escutou risadas e resmungos e, enquanto passava os olhos por cima dos presentes como que casualmente, viu-os sentados a um canto. Correspondiam às visões que o feitiço lhe proporcionara e à descrição que Ayalal dera à Directora Drane.

Achegou-se do balcão e pousou os braços sobre o tampo. A sujidade estava de tal forma incrustada que quase disfarçava os veios da madeira com que fora feito. O taberneiro, um homem de rosto encarquilhado e barba rala, passou diante dele com duas cervejas em mãos, as quais pousou e atirou na direcção dos fregueses que as tinham pedido. As canecas escorregaram pelo tampo, entornando parte do conteúdo, até serem detidas por mãos que as ergueram para sorver o conteúdo.

– O que vai ser? – perguntou o taberneiro, falando como se nas suas palavras se fundisse algum tipo de cumprimento.

– Uma caneca de cerveja – respondeu Yudarh pousando sobre o balcão uma moeda que brilhou a dourado. – E algo mais.

– Hm… – fez o homem, erguendo uma sobrancelha grisalha. – E que algo mais seria esse?

– Informação. Procuro três homens. Violadores e assassinos – disse, não se dando ao trabalho de baixar o tom de voz. Fez a moeda escorregar até junto do taberneiro. – São procurados pela guarda, segundo consta.

As conversas continuaram em seu redor, mas Yudarh tinha a certeza que alguns pares de orelhas se teriam voltado para aquele lado.

– O senhor não me parece da guarda.

– E não sou. Tenho um assunto a tratar com esses três homens, se me pudesse ajudar. – E deu-lhe as descrições que tinha.

Houve indecisão no olhar do homem e um relancear pela sala. Depois o rosto tornou-se firme. O homem abanou a cabeça numa negativa.

– Não sei de quem fala. Terá de ir procurar noutro sítio – declarou, afastando-se para lhe ir encher uma caneca.

Yudarh não insistiu. Tomou a sua bebida e não tardou a deixar a taberna. Caminhou devagar pela rua. Atrás de si, escutou a porta a voltar a abrir e fechar, e ouviu passos quase tão calmos quanto os seus, seguindo-o. Mais do que um par. Enveredou por uma rua cuja luz provinha somente das extremidades que se cruzavam com outros caminhos. Os passos aceleraram.

– Hey, companheiro! – A voz alcançou-o quando ia a meio da rua.

Yudarh parou e rodou sobre si, encarando três homens. O da frente, de barba bem aparada e que lhe sorria de forma prazenteira, tinha a sua estatura e trazia uma espada embainhada à cintura; os outros dois, atrás dele, eram o oposto um do outro, um deles composto de músculos fortes, o outro magro, de mãos pousadas nos punhos das adagas ainda nas bainhas. Ambos sorriam também, um sorriso de satisfação própria, como se tivessem conquistado um objectivo de forma mais fácil do que haviam previsto.

– Boa noite, senhores – cumprimentou Yudarh. Não havia dúvida da identidade daqueles homens. Crispou a mão no bastão que segurava ao seu lado e conteve-se para não lançar um feitiço que os destruísse a eles e a parte das casas que os rodeavam.

– Ouvimos dizer que procurava três homens com… a nossa descrição? – perguntou o da frente, abrindo as mãos e referindo-se a si e aos outros dois. Agia como se fosse o chefe no pequeno grupo.

– De facto, procurava – respondeu, obrigando-se a manter um tom calmo. – Ontem violaram e mataram uma jovem e magoaram seriamente um meio-vampiro. Ainda não foram apanhados, e isso interessou-me.

Via no rosto dos três que já tinham uma ideia do que fazer com ele. Não se chegaram sequer a entreolhar quando Yudarh referira os crimes.

– Lamentamos mas de momento não aceitamos contratos – disse o homem da barba, avançando um passo para Yudarh. – Estamos quase a partir da cidade, não queremos deixar nada a meio.

O tiefling piscou os olhos, simulando uma admiração que não sentia.

– Partir? Seria uma pena não ficarem aqui – disse, levando uma mão ao interior do manto que o cobria. Eles observaram-no, na espectativa, pensando ver surgir uma bolsa de dinheiro. No entanto, o que Yudarh retirou de um dos bolsos foi um pequeno e seco tentáculo de polvo.

Os sobrolhos deles franziram-se um pouco, sem compreenderem. Antes que tivessem tempo de agir, Yudarh sussurrou palavras arcanas e fez gestos rápidos com as mãos. O pedaço de tentáculo desfez-se em pó que lhe escorreu por entre os dedos.

– Magia… – murmurou o homem mais musculoso. Com um urgente intento assassino no olhar, tentou passar à frente do seu chefe. Todavia, não deu mais do que dois passos. Aos pés de todos os três homens, um enorme círculo feito da mais pura escuridão surgiu como se cuspido por um buraco negro. Dele nasceram inúmeras formas tentaculares que se lançaram e enrolaram em redor dos primeiros seres vivos que encontraram. Nenhum escapou.

Yudarh observou-os, deixando cair a máscara impávida com que cobrira o rosto. Os seus orbes tomaram uma frieza implacável.

– Que esta punição vos entregue perante os deuses que julgarão os vossos crimes – ditou, vendo-os contorcerem-se para se tentarem escapar, vendo como entravam em pânico ao constatarem que eram incapazes de fugir, à medida que a constrição aumentava e lhes roubava a vida.

Gritaram por ajuda, mas ninguém veio. Imploraram piedade, porém Yudarh ignorou cada uma das palavras. Ofereceram-lhe dinheiro, no entanto nenhum deles tinha dinheiro suficiente que pagasse a vida de Lysa nem a dor de Ayalal.

Os tentáculos negros largaram os corpos quando já não havia qualquer vida que pudesse ser drenada.

Mosteiro das Sete Formas, 28 de Calistril de 4593 AR (parte II)


Após abrir a porta, Yudarh observou-a durante um segundo, de sobrolho franzido.

– Senhora directora – disse, mantendo um tom neutro. – Em que posso ajudá-la?

– Preciso… – A voz cambaleou. – Preciso de falar consigo, senhor Yudarh. Ou Daryun.

Ele nada comentou, ficando a aguardar que algo mais fosse dito. A directora engoliu em seco, porém enfrentou-lhe o olhar.

– A Lysa morreu e o Ayalal está bastante ferido – informou, num tom mais baixo. – E pode correr perigo de vida.

O tiefling não estava à espera daquilo. Piscou os olhos e entreabriu os lábios para dizer qualquer coisa, porém ficara sem palavras. Afastou-se da entrada, dando passagem à mulher de meia-idade que entrou e esperou ser guiada. Nunca fora até à casa do meio-demónio, mas desde pequena que sempre soubera onde ele vivia. Ninguém se atrevia a aproximar-se, ninguém excepto Ayalal, Lysa e, segundo ouvira dizer, alguns dos guardas da cidade. Drane nunca sentira uma óbvia necessidade de se deslocar até ali, não por qualquer preconceito, mas simplesmente por sentir que cada um pertencia a locais diferentes da cidade, e não havia razões para se cruzarem. Admitia que isso fora um erro da sua parte. Provara-se isso quando o tiefling saíra de sua casa para auxiliar na cura da epidemia que rasara as crianças, em que fora Ayalal a tomar a iniciativa de o ir buscar. Nessa altura ficara grata ao meio-demónio sob disfarce de homem que abordara o orfanato. E agora ei-la ali, voltando a requerer a sua ajuda, sem mais ninguém a quem acorrer.

Yudarh guiou-a até à sala e indicou-lhe uma cadeira. Ele ficou de pé diante da directora.

– O que é que aconteceu?

Drane suspirou, pousando as mãos no colo e apertando uma sobre a outra. Contou-lhe como os haviam encontrado e aquilo que Ayalal lhe soubera dizer. Quando terminou, os lábios pressionaram-se até formar uma linha fina e trémula. Piscou os olhos várias vezes, afastando as lágrimas que ameaçavam cair.

Yudarh voltou-lhe as costas e deu alguns passos. Os punhos cerravam-se com força junto ao corpo. O tiefling não queria acreditar no que a directora dissera, mas sabia que ninguém, muito menos ela, se daria ao trabalho de o visitar para lhe contar uma mentira tão dolorosa. Inspirou fundo e abanou a cabeça numa negativa repleta de frustração. Falhara, inegavelmente. Deixara que as únicas pessoas que nos últimos anos lhe haviam estendido a mão e acarinhado caíssem nas garras de um mal retorcido que as estilhaçara e roubara o que tinham de mais precioso. Parou diante da lareira, observando as chamas. Num gesto súbito, esmurrou a parede, a dor do impacto estremecendo-lhe os ossos.

Em silêncio, a directora aguardou, evitando olhá-lo.

– Encontrá-los-ei – acabou por dizer o meio-demónio. As suas palavras estavam impregnadas num tom definitivo. – Resolverei o assunto.

*

Sob a forma do viajante humano, Yudarh acompanhou a directora de regresso ao orfanato. Foram encontrar Ayalal no quarto, sentado na sua enxerga, encostado a uma parede. A criança não ergueu o olhar quando os ouviu entrar. As suas pálpebras continuavam inchadas e os olhos vermelhos fitavam o papel pequeno que tinha nas mãos.

Yudarh acocorou-se ao lado dele, sem que o rapaz lhe dispensasse qualquer fragmento de atenção. O meio-demónio espreitou o desenho amachucado. Ayalal pedira-lhe aquele pedaço de pergaminho porque queria fazer um presente para Lysa. Yudarh dera-lho e vira-o desenhar nele, muito concentrado. Ay chegara a perguntar-lhe se queria ser incluído, mas o meio-demónio frisara bem que não, que era algo especial de Ayalal para Lysa, partilhado só por ambos, para celebrar terem-se conhecido. E agora ali estava o pequeno, sozinho com uma lembrança que o deveria estar a dilacerar.

– Ayalal – murmurou. – Olha para mim.

O rapaz não lhe obedeceu. Se estava a ignorá-lo propositadamente ou se não tinha coragem para o fazer, Yudarh não estava certo. Talvez a sua alma estivesse demasiado distante, talvez…

– A culpa foi minha.

As sobrancelhas de Yudarh quase se uniram a meio da fronte quando ele as franziu. Esticou uma mão e levou-a ao rosto do rapaz, erguendo-lho e voltando-lho para si. Algumas manchas arroxeadas e inchadas mordiam a pele pálida de Ayalal junto de um dos olhos.

– Isso não é verdade – disse-lhe com firmeza. – A culpa é das criaturas que vos magoaram. Tu és inocente, Ayalal. Eu sei isso, a Lysa também o sabe.

Os lábios da criança tremeram.

– A Lysa já não sabe nada – sussurrou a custo.

– Enganas-te. O corpo dela pode ter desaparecido, mas a alma continua a existir, algures. A vossa deusa, Andoletta, estará a aguardá-la para que possa viver no reino sagrado. E, desse local, ela observar-te-á. Sempre. Nunca duvides disso.

Ayalal desviou o olhar sem lhe responder. Yudarh sabia que ele não conseguiria acreditar, não para já. Os acontecimentos eram demasiado recentes. O tempo ajudaria a sarar, pouco a pouco, aquele profundo ferimento.

O tiefling suspirou e, desistindo da troca de palavras, murmurou um feitiço que o pequeno já uma vez presenciara. Um formigueiro familiar correu o braço partido de Ayalal, assim como a ferida junto à nuca, e as dores que a criança sentia começaram a desvanecer-se até serem somente uma recordação.

– Agora estás um pouco melhor – disse Yudarh. No entanto, curar o estado físico do rapaz era tirar-lhe somente uma ínfima parte do sofrimento. Fez-lhe uma festa no rosto, talvez a primeira em muitos anos, antes de afastar a mão e erguer-se. – Vem ter comigo quando te sentires melhor, estarei à tua espera.

Como esperava, não obteve nenhuma resposta de Ayalal, só o silêncio da mágoa.


Mosteiro das Sete Formas, 28 de Calistril de 4593 AR (parte I)


As lágrimas caíam em silêncio, enquanto Ayalal observava as chamas a consumirem o corpo sobre a pira fúnebre. De braço ao peito e ligadura em volta da cabeça, ele encontrava-se lado a lado com a directora, na fila da frente. A sua mão deslizou até ao bolso e retirou do interior o pedaço de pergaminho que deveria ter oferecido a Lysa no dia anterior, como agradecimento e esperança de que continuassem sempre juntos. Desdobrou-o e observou o desenho que ele próprio fizera. Com linhas toscas de tinta preta, Ayalal representara ambos, de mãos dadas, e escrevera o nome de cada um sobre a figura respectiva. Na altura pensara que Lysa ficaria orgulhosa por testemunhar os avanços das suas aulas com Yudarh.



Engoliu em seco. Devia atirá-lo para as chamas, deixar que ardesse com ela, como a sua última oferenda.

Fechou a mão sobre o desenho, esmagando-o enquanto os dentes se cerravam com força. Era inútil, tão inútil quanto ele fora ao ser a causa da sua morte. A culpa fora sua. Se ele não tivesse ido atrás do gato, se não se tivesse afastado, ela não teria de o procurar. Estaria viva e ainda poderia sorrir. Nunca mais a poderia abraçar ou dar a mão. Naquele momento, aquele desenho não passava de uma mentira.

– Desculpa – sussurrou, fitando o fogo com os olhos turvos pelas lágrimas. Deveria ter sido ele, não ela. Ele devia estar morto. Porque é que os deuses não o teriam permitido? Porque é que fora tudo tão errado?

Inspirou fundo e voltou a guardar o desenho no bolso, sem se atrever a largá-lo. Permaneceu assim até o fogo se extinguir.

No final da celebração fúnebre, foi-lhes dada a opção de guardarem as cinzas de Lysa. Ayalal deixou que a senhora Drane decidisse a esse respeito. Após alguma hesitação, trouxeram-nas e a directora guardou-as no seu gabinete, no interior de um pote de barro.

– Quando as quiseres, elas estarão aqui – murmurou para um Ayalal silencioso que seguira os seus passos até à porta, onde se deixara ficar à espera. Ele pareceu não reagir no primeiro instante, mas depois os seus olhos fitaram a prateleira onde estava o pote. A directora viu neles um desespero que lhe cortou o coração.

A mulher fechou a porta atrás de si, deixou a criança à guarda de uma das raparigas mais velhas, e voltou a sair do orfanato. Caminhou pelas ruas a passos largos, afastando-se da zona mais populosa. A sua expressão reflectia a preocupação profunda que a perseguia. 

Nessa manhã a guarda fora até ao orfanato escutar o relato de Ayalal a respeito do que se passara no dia anterior. No entanto, antes de ele lhes dizer tudo o que sabia, já a directora Drane lho fizera contar tudo, tão pormenorizadamente quanto conseguira, por entre estremecimentos e soluços. Por essa razão, os guardas não tinham obtido toda a verdade. Sob exigência da directora, e para sua protecção, Ay omitira que os três homens que descrevera o tinham tentado capturar e matar por ser descendente de um vampiro. Fora também essa a grande razão porque ela impedira o clérigo de curar os ferimentos de Ayalal. Se o homem tivesse continuada com a sua magia, a criança poderia estar agora morta devido a uma descarga de energia positiva.

Se não podia confiar à guarda informação tão vital, precisaria do auxílio urgente de outra fonte. Não poderia permitir que Ayalal voltasse a ser atacado, nem que mais alguém do seu orfanato sofresse um destino como o de Lysa.

Subiu as escadas íngremes cravadas na pedra da própria montanha e pisou o princípio do túnel iluminado pelas tochas eternas. Deteve-se por um momento. Sabia para onde ia e ao que ia, porém entrar sozinha num túnel vazio deixava-a reticente. Tentou ignorar a hesitação e avançou. Atravessou a encruzilhada, mantendo o olhar fixo no seu destino e fazendo por não dispensar qualquer atenção à escuridão na qual mergulhava um dos caminhos. Acreditava nos mitos a respeito das criaturas que habitavam a escuridão, era impossível não existir vida nas imensas galerias que minavam as montanhas. Porém, se não havia indícios de ataques a centros urbanos, era porque não deveria preocupar-se com esse assunto.

Parou diante da porta de Yudarh e bateu três vezes. Aguardou de costas direitas e rosto solene até a porta se abrir.

Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4593 AR (parte VI)


– Não… – A voz da directora tremeu quando o seu olhar caiu sobre o corpo no chão. – Não faça esse feitiço. Tratarei do rapaz sem qualquer magia. Agradeço, no entanto, reverendo.

O clérigo piscou os olhos, confuso com aquela decisão.

– Não irei cobrar nada, senhora – garantiu, pensando para si que o problema seria o custo do seu trabalho. Por norma eram feitas doações à Igreja de Aroden pelos serviços que prestavam, mas havia sempre exepções.

A senhora Drane abanou a cabeça numa negativa peremptória.

– Ele sarará por si mesmo. Esses não são, com certeza, os seus ferimentos mais profundos.

Apesar de obviamente em desacordo com aquela atitude, o clérigo aquiesceu face às últimas palavras. Endireitou-se com um suspiro que lamentava por todo aquele momento.

Por sua vez, a directora do orfanato ajoelhou-se ao lado de Ayalal, mantendo uma compostura firme mas não séria. A criança fitava-a em desespero, o seu olhar implorando-lhe por algo impossível, uma coisa que só os deuses ou os feitiços mais poderosos eram capazes.

– A Lysa partiu, Ay – murmurou-lhe, estendendo um braço e abarcando-lhe os ombros. Ainda assim o tom vacilou, como se ela mesma não estivesse certa daquilo com que se deparara.

A criança encolheu-se, em parte devido à dor que o toque lhe causara.

– Não. Ela está aqui, está mesmo aqui – indicou, os olhos arregalando-se, enquanto pegava na mão fria do corpo.

– Está, mas… está vazia. A sua alma já não pertence a este mundo – notou. Drane mordeu o lábio inferior que estremeceu por um momento diante da sua própria constatação. Tossicou para aclarar a voz. – Partiu para outro reino.

– Não. – Ayalal voltou a negar, apertando a mão. – Não, não…

– Tu és forte, Ayalal, e já és crescido – disse-lhe num falso tom calmo. Era uma mentira. Estava ao lado de um rapazito que nesse dia fazia sete anos. Era-lhe impossível encontrar palavras de consolo, e tinha a certeza que nenhuma das suas sortiria o efeito desejado. Tudo lhe parecia demasiado cruel. – A Lysa não gostaria de te ver triste.

O rosto do rapaz contorceu-se num esgar de dor e o choro tomou-o novamente, prendendo-o em si. Ayalal encostou a mão gelada ao rosto, chorando para ela.

Não tardou muito para que no beco se concentrasse uma pequena multidão de observadores que sussurravam entre si. Por fim, de espada embainhada à cintura e uniformes com o brasão da cidade, dois oficiais da guarda da cidade abriram caminho por entre as pessoas, parando junto ao corpo. Questionaram o homem que encontrara Lysa e Ayalal – um mendigo que vagueara até ali por acaso – e só depois tentaram interrogar a criança. Todavia a directora Drane interpôs-se, lançando um olhar duro a ambos.

– O rapaz precisa de repouso e de tratamentos. Não está em condições para nada, senhores oficiais – ditou, erguendo-se e endireitando as costas. – Poderão encontrá-lo no orfanato, quando for necessário.

Os guardas entreolharam-se e, tendo mais em conta as palavras e menos o tom ríspido, acabaram por aceder.

– Amanhã de manhã – disse um deles. – Um guarda passará no orfanato para interrogar o rapaz.

– Muito bem. Agradeço a compreensão. Quanto à jovem… quando pudermos prestar-lhe as últimas honras, gostaria de ser informada.

Ambos garantiram que muito provavelmente no próximo dia o corpo seria entregue à Igreja de Aroden onde poderiam proceder ao funeral.

Enquanto a conversa decorria, chegou um novo grupo de guardas, trazendo consigo uma maca improvisada. Quando um deles tocou no corpo de Lysa, Ay soltou um mescla de gemido e grito e voltou a debruçar-se sobre ela, de forma protectora.

– Deixem-na! – gritou-lhes, enterrando o rosto no peito dela, enquanto o braço não partido a semi-rodeava. – Não lhe toquem!

A directora inspirou fundo e forçou-se a dirigir-se à criança. Dobrou-se sobre ela.

– Ayalal, os senhores precisam de trabalhar. A Lysa não pode ficar aqui no chão para sempre, sabes disso – disse, pousando-lhe uma mão na cabeça. Por reacção, a criança encolheu-se e gemeu de dor, levando a que a senhora Drane erguesse a mão de imediato. Ficara húmida. Ao olhar para ela, deu conta do tom vermelho escuro e só então se apercebeu que Ay tinha o cabelo da nuca empapado em sangue. – Anda, larga-a. Tem de ser. Amanhã poderás voltar a estar com ela.

Tardou uma dúzia de segundos, até o rapaz se obrigar a largar o corpo morto. Porém o seu olhar ficou preso nele, tal como o coração.

Com um gemido de esforço, a senhora Drane pegou nele ao colo e afastou-o do beco. Ay caiu num choro silencioso durante todo o caminho até ao orfanato. Lá, as crianças esperavam por eles na cozinha e, com o olhar, seguiram os recém-chegados enquanto estes atravessavam o corredor e subiam para o quarto das crianças.

Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4593 AR (parte V)


Vozes. Sussurros perto de si, gritos altos. Ambos perfuravam-lhe a cabeça sem piedade. 

– Ele está a acordar! 

Ayalal não reconhecia o dono daquela voz. Quem seria… Lysa? 

Escancarou os olhos e tentou levantar-se num impulso. Uma gigantesca onda de dor percorreu-lhe o corpo, arrancando-lhe um grito engasgado. Alguém o amparou, ajudando-o a voltar à posição inicial num movimento lento. 

– Calma, pequeno, calma. É melhor que não te mexas, estás muito magoado. 

Os olhos focaram-se devagar, enquanto combatia a tontura que lhe enevoava a mente. Ayalal começou a discernir os contornos de uma pessoa ajoelhada ao seu lado. Não era Lysa, nem sequer era uma mulher. Havia consternação no rosto do desconhecido. 

– Eles são do orfanato, reconheço a rapariga – disse uma voz próxima que, ao mesmo tempo, parecia distante. 

Ay inspirou fundo e, ao fazê-lo, arrepiou-se. Sentia-o a pairar no ar, impregnando-lhe os pulmões. Cheirava a sangue. Aos poucos, a memória começou a erguer-se do foço onde havia mergulhado. Recordou-se do gato que perseguira, do beco sem saída onde desembocara, dos homens que o haviam emboscado, de Lysa. 

Devagar, para não voltar a sucumbir à dor, obrigou-se a levantar e olhou em volta. Uma dúzia de pessoas debruçavam-se sobre alguma coisa, cochichando entre elas. Aos seus pés havia um corpo imóvel. 

– Lysa – sussurrou. As pernas vacilaram ao primeiro passo, no entanto sustiveram-lhe o peso. – Lysa… 

– Não vás, pequeno, não há nada que possas fazer. Espera que o clérigo chegue e trate de ti, ele não deverá tardar. 

Ayalal ignorou o homem, avançando tão depressa quanto conseguia. A mão direita agarrava o braço esquerdo, contendo-lhe as oscilações assim como as dores que raiavam do osso partido. 

O rapaz deixou-se cair de joelhos ao lado de Lysa. Mordeu o lábio inferior com força enquanto os olhos se enchiam de lágrimas. Um soluço esmagou-lhe a garganta. A saia do vestido dela estava manchada de sangue e rasgada em várias zonas. Os pulsos descobertos e o pescoço esguio revelavam marcas de um tom arroxeado. De cabeça descaída para um dos lados, ela mantinha os olhos abertos. Estavam completamente vazios de vida, tal como o seu corpo. Não havia um único sopro, uma única inspiração que lhe erguesse o peito. 

A criança começou a tremer, as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto. 

– Acorda… – murmurou, tocando-lhe no braço. – Por favor, volta, Lysa… volta… 

Cerrou os dentes, vergando-se sobre o corpo e encostando a fronte ao peito dela. Soluçou alto, enquanto uma dor terrível lhe esmagava o peito e uma mão repleta de garras lhe retorcia o coração. Ele sabia que não havia forma de ela acordar ou sequer voltar. 

Um silêncio pesado acompanhou o choro do rapaz. Algumas pessoas observavam a cena com olhares de lamento, outras desviavam o rosto, abanando a cabeça. Porém ninguém se atreveu a afastar a criança do corpo caído na pedra fria. 

Passaram alguns minutos. Um par de passos rápido ecoou pelo beco, aproximando-se. Estacou junto a Ayalal e, por alguns segundos, nada disse. Só depois uma mão lhe tocou o ombro ao de leve num gesto de conforto, quando o recém-chegado se acocorou ao lado dele. 

– Compreendemos a tua dor, pequeno. A sua alma repousará em paz, os deuses irão velar por ela, garanto-te. 

O rapaz não respondeu. Na verdade, as palavras tinham passado por ele como um sopro rápido do vento. Não lhe diziam nada, não lhe ofereciam nada. Eram somente um eco repetitivo que pairava sem destino certo. 

O clérigo deixou escapar um suspiro de lamento. Com a mão livre, tomou o pendente que lhe pendia do pescoço e que representava o Olho de Aroden. 

– Vou atenuar parte da dor que te consome, meu filho – disse, apertando-lhe o ombro ao de leve. 

Começou a recitar as palavras sagradas que imploravam ao seu deus que sarasse a pobre alma diante de si. Porém, quando estava quase no final do ritual, um vulto precipitou-se para ele num passo de corrida. 

– Pare! – A rispidez da voz ressaltou pelo beco, cortando a voz ao clérigo. O homem ergueu o olhar encarando a mulher de meia-idade diante de si. Alguns dos cabelos grisalhos haviam-lhe fugido do coque e a sua respiração parecia arranhar os pulmões. 

Ay reagiu à voz. Levantou o rosto devagar e, com os olhos tingidos de vermelho, fitou a Directora Drane.

Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4593 AR (parte IV)


– Ayalal!

Lysa vagueou por entre as pessoas, rodando a cabeça enquanto o tentava avistar. Apercebera-se que ele se levantara e fora atrás de alguma coisa, mas esperara que ele regressasse no instante seguinte. Porém haviam já passado alguns minutos e não havia sinal do rapaz. Voltou a chamá-lo pelo nome, sem obter qualquer resposta. Onde é que ele se teria metido? Teria regressado sozinho para o orfanato? Ayalal conhecia as ruas, não se perderia por ali, porém era estranho não a ter avisado.

Caminhou por mais alguns minutos, abordando uma ou outra pessoa, perguntando-lhes se haviam visto um rapazinho pálido a passar por ali. Ninguém o vira. Parou no meio da rua, oscilando entre a frustração e a preocupação. Se ele tivesse mesmo regressado para o orfanato sem a avisar, iria ouvir um valente raspanete.

– Ah, peço perdão…? – Uma voz suave chamou-lhe a atenção e Lysa olhou por cima do ombro.

Uma mulher, não muito mais velha do que ela e com a mesma estatura baixa, encontrava-se parada atrás de si com um dedo estendido, como se se preparasse para lhe tocar nas costas. Com o outro braço amparava contra o peito um gato de aspecto adoentado o qual lançou a Lysa um olhar lânguido e desinteressado.

– Sim?

– Ouvi dizer que andava à procura de um rapaz. – A jovem observou-a com uns expressivos olhos azuis, em busca de uma confirmação. Tinha o cabelo preso numa longa trança de um ruivo quente, e o rosto salpicado de sardas. Lysa tinha a certeza de que nunca vira a rapariga na cidade subterrânea.

– Ando. Ele afastou-se do grupo e não sabemos onde possa estar – confessou. – Ele é assim deste tamanho, com o cabelo preto e a pele muito clara.

Situou a mão ao nível do peito, como referência para a altura de Ayalal.

A rapariga pousou o queixo sobre a mão livre, a expressão enrugando-se um pouco enquanto pensava. Um instante depois os olhos arregalaram-se.

– Sim! Vi-o a correr naquela direcção.

Apontou para a entrada de uma rua estreita. Lysa não sabia exactamente onde poderia desembocar. Franziu as sobrancelhas mas agradeceu com um sorriso leve, antes de se afastar com passadas largas.

Atrás dela, a rapariga viu-a partir, enquanto afagava o gato entre as orelhas. Quando deu meia volta e se perdeu entre os transeuntes, levava consigo um sorriso largo que lhe espalhava no rosto um sincero regozijo.

*

Tinham-no amarrado, pouco importados com as lágrimas de dor ou com os gemidos que cada movimento do braço esquerdo causava. Tentou gritar uma vez, porém um murro do homem mais magro silenciou-o.

– Bem, é agora que nos livramos de ti, pequena aberração – disse o homem de espada embainhada. Acocorara-se ao seu lado, olhando-o com curiosidade. Levou-lhe uma mão ao rosto e, sem cuidado, afastou-lhe os lábios, observando-lhe os incisivos afiados. – E podemos levar estes como recordação. Poderão valer qualquer coisa.

Ay tentou afastar a cabeça da mão calejada que lhe tocava. Olhou na direcção da saída do beco. Eles não tinham como levá-lo sem darem nas vistas, não podiam simplesmente enfiá-lo dentro de um saco e levá-lo ao ombro ou arrastá-lo. Ao mesmo tempo que pensava isto, apercebeu-se de que uma sombra se aproximava. Por fim, alguém que o pudesse salvar! Gritou por ajuda, e uma voz feminina respondeu, chamando-o pelo nome. Um aperto gelado esmagou-lhe o peito ao reconhecê-la, e quando viu Lysa surgir diante de si, o coração parou.

– Ay! – Havia choque espelhado na cara de Lysa, enquanto assimilava toda a situação. O olhar saltou da criança para os três homens. – O que… deixem-no!

O homem acocorado soltou um estalido com a língua. Ay desviou a atenção para ele e o que viu fê-lo temer mais do que temera por si. O homem tratara-o como se fosse um divertimento ligeiramente interessante e rotineiro, sendo a sua possível morte algo tão banal como beber uma cerveja numa taberna. Porém a chegada de Lysa aguçara-lhe o sorriso para um esgar tortuoso. Os orbes brilhavam de antecipação por algo que Ay não compreendia – ou tinha medo de compreender.

– Ora, ora, ora… – Ergueu-se e rodou sobre os calcanhares para encarar Lysa. Cruzou os braços sobre o peito, inclinando um pouco a cabeça para um dos lados. – O que temos nós aqui? Uma donzela perdida?

Os outros dois homens entreolharam-se e trocaram um sorrisinho sarcástico. O mais magro avançou pela periferia de um dos lados do beco, aproximando-se.

Os punhos de Lysa fecharam-se com força e ela inspirou fundo.

– O que julgam que estão a fazer a essa criança? – O seu tom era simultaneamente vacilante e resoluto. – Libertem-na.

– Isso é uma ordem? Ouviram, rapazes? Esta frágil donzela está a dar-nos ordens. – Uma risada acompanhou-lhe o comentário e ele abanou a cabeça com descrença. – De facto, há mulheres com sentido de humor… agarrem-na.

Lysa recuou um passo e abriu a boca. Escutou-se o início de um grito.

– Façamos isto a bem! – A voz do homem interrompeu-a. – Se gritares ou fugires, matamos a cria de vampiro. Se colaborares, talvez o poupemos. Parece-me um bom negócio, não achas?

A jovem voltou baixar o olhar para Ay. O instante em que se encararam foi o suficiente para o rapaz perceber que a haviam deixado sem opções. O peito de Lysa ergueu-se numa inspiração funda de aceitação. Os punhos cerraram-se com força por um instante e depois relaxaram. Antes que ela pudesse responder à chantagem, o homem que se havia aproximado subtilmente avançou para ela num movimento rápido e agarrou-a pelas costas, prendendo-lhe as mãos com uma das suas, e pousando-lhe a outra sobre a boca.

– NÃO! Deixem-na! – O grito de Ayalal ecoou no beco. Tentou libertar-se, mas havia mais do que uma corda a impedi-lo. A dor do braço era excruciante, torturando-o a cada pequeno movimento. – Larguem-na!

O chefe do trio olhou-o por cima do ombro.

– Cala-te. – Voltou-se, dobrou as costas e agarrou-o pelo cabelo, levantando-lhe a cabeça do chão muito ligeiramente.

Ay cerrou os dentes e silvou por entre eles, de lágrimas a escorrerem-lhe rosto abaixo. Voltou a relancear Lysa, agora com mais dificuldade. O homem maior aproximara-se também e as suas mãos pareciam procurar algo no velho vestido. Medo, pânico, dor, coragem… havia tudo isso na expressão dela, assim como desafio a si mesma.

– Larg… – A palavra ficou a meio, quando, com toda a força, o chefe empurrou a cabeça do rapaz contra a pedra do solo. O berro de dor de Ayalal foi interrompido por uma tontura, seguida de uma escuridão súbita que lhe arrombou as portas da mente para o prender em si. A consciência esvaiu-se.


Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4593 AR (parte III)


Um arrepio de puro pavor percorreu-lhe as costas. Ayalal recuou um passo pequeno, tentando pensar nas hipóteses de fuga que poderia ter. Atrás de si não havia saída e a probabilidade de conseguir passar pelos três homens era menos do que ínfima. A imagem do gato a saltar da pilha de caixotes para o telhado de uma das casas pairou por um momento na sua memória.

– Não tens para onde ir, rapaz – notou o homem da espada, avançando num passo descontraído.

Ay engoliu em seco com dificuldade, a mesma que sentia ao respirar. Continuou a recuar, até se aperceber da presença do primeiro caixote, através da visão periférica. Correu para ele e trepou-o com movimentos frenéticos. Escutou uma agitação atrás de si, porém não ousou olhar, não já. Subiu para o caixote seguinte, ficando à altura de um homem de estatura média. Num gesto rápido, atreveu-se a espreitar por cima do ombro, quando se preparava para trepar um terceiro caixote, enclavinhando as mãos entre as ripas de madeira. O homem da espada tinha um braço estendido à sua frente, parecendo ter impedido o mais magro de arremessar uma adaga, e observava o seu avanço com uma expressão curiosa e interessada.

A estrutura periclitante estremeceu quando o rapaz deu o impulso para subir para o caixote seguinte. Ficou parado, de gatas sobre a madeira, enquanto esperava que a sua precária escada de fuga estabilizasse. Inspirou fundo, antes de erguer o olhar para o quarto caixote. Levantou-se com cuidado, lançando um novo olhar para trás.

– Vá, continua a tentar fugir – incentivou o homem, fazendo um aceno para cima com a cabeça. – Estamos aqui para ver quão longe consegues ir.

Com hesitação e desconfiança, o rapaz voltou a olhar na direcção do topo da casa. Não faltava muito. Se subisse para o próximo caixote, o telhado estar-lhe-ia ao alcance das mãos. Esticou-se, tentando agarrar com firmeza na tampa de madeira. No entanto, uma dor aguda e fria penetrou-lhe num dos dedos indicadores. Um grito engasgado encheu-lhe a garganta e o rapaz libertou a mão, a dor tornando-se quente, quando o sangue se libertou e escorreu. Ayalal levou-o à boca, abafando a dor, enquanto as lágrimas lhe vinham aos olhos. No mesmo instante, o intenso sabor a sangue encheu-lhe a boca, reavivando a memória daquilo que era, do nome que o homem lhe chamara. De alguma forma o toque morno, conjugado com a dor e com essa memória, conseguiu mantê-lo firme. Inspirou fundo e tirou o dedo da boca, flectindo a mão como quem testa a sua mobilidade.

Mentalizou-se de que conseguiria sair dali e fez uma nova tentativa, evitando a zona onde estaria o prego que o ferira. Cerrou os dentes e conteve a respiração por um segundo, içando-se e combatendo o instinto de largar as mãos quando toda a estrutura oscilou perigosamente. Ao sentir os pés apoiarem-se na superfície horizontal, suspirou e endireitou-se. Tinha o nariz ao nível da zona onde começava o telhado plano. Quando esticou os braços e os apoiou no parapeito de pedra para se puxar para cima, ouviu lá de baixo: “agora”.

Uma pancada seca ecoou no beco e, de súbito, Ay sentiu o caixote onde se apoiava fugir-lhe de debaixo dos pés, acompanhado por um estardalhaço de madeira a embater no chão. Os olhos quase lhe saltaram das órbitas quando o pânico o tomou sem aviso. Tentou agarrar-se à borda do edifício, esgatanhar com os pés na parede para se impulsionar para cima, mas os sapatos deslizavam e não havia nenhuma reentrância onde se apoiarem. Os braços começaram a escorregar. Mordeu o lábio inferior, tentando forçar os membros a aguentar-lhe o peso.

– Quanto mais alto se sobe…

A voz vinda do beco soou-lhe como um prenúncio de morte. Escorregou até ficar pendurado somente pelas mãos. Tentou cravar as unhas na pedra, criar qualquer atrito que o sustivesse, mas os dedos deslizaram, até sentirem somente o ar. Conteve a respiração, fechou os olhos e caiu. Quase de imediato, o ar saltou-lhe dos pulmões com um grito lancinante, quando atingiu um dos caixotes caídos. O seu corpo resvalou para o centro do beco, ao mesmo tempo que uma tremenda dor emanava do braço sobre o qual caíra. Não ouviu os passos a aproximarem-se, mas ouviu a voz debruçar-se sobre ele, enquanto uma sombra o espreitava.

– … maior é a queda.

*